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O Estado-juiz

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Em 2000, escrevi na minha dissertação de mestrado: “A crise do Estado com a consequente perda da centralidade da política expressa-se no plano da subjetividade pela dissolução do cidadão em consumidor de produtos, de ideias, de serviços públicos e ‘privados’, de amor, de sexo…”. E prosseguia: “Desaparece a política como meio de realização do ideal iluminista da liberdade como autonomia em favor do mercado capitalista, a grande abstração normativa que regula com sua lógica instrumental o conjunto das relações sociais. A polis cede lugar ao shopping center. Assim, se o homem moderno buscou salvação na arte, na história, no desenvolvimento, na consciência social, o homem ‘pós-moderno’ se entrega ao presente e ao prazer, ao consumo e ao individualismo. E imergimos no capitalismo niilista, tautológico, que já não necessita legitimar-se pelo interesse geral, bastando-se a si mesmo”.

A polis, conceito-síntese para as (sempre complexas e tensas) interações entre política e direito, acompanha minhas reflexões e vida civil desde a juventude, como aluno de Direito e militante do movimento estudantil. Daí me alegra que eu possa agora ler o raciocínio atualíssimo do amigo juiz federal Eduardo Appio no seu novo livro, em coautoria com Salvio Kotter, A ­Ágora e o Algoritmo – Direito e Democracia na Era Digital, publicado pela Kotter Editorial.

Appio é o corajoso juiz federal que substituiu Sergio Moro na 13ª Vara da Justiça Federal de Curitiba, a vara da Lava Jato, que se especializou em colocar de joelhos a engenharia pesada nacional para o gáudio das suas concorrentes internacionais. O magistrado comeu o pão que o diabo amassou. Sua via-crúcis na famosa 13ª Vara é ­objeto de outro livro (Tudo por Dinheiro: A ­Ganância da Lava-Jato, Segundo ­Eduardo Appio).

Em diálogo comigo, Appio, amigo de doutorado na Universidade Federal de Santa Catarina (que ele concluiu e eu não, fagocitado que fui pela luta política em pleno governo Requião), diz que seu novo livro trata do “desafio de judicializar o conteúdo das redes sociais em equilíbrio com a liberdade de expressão e lisura das eleições gerais”. Para ele, “a democracia representativa está sendo asfixiada pelas big techs, que pretendem decidir as eleições conquistando corações e mentes por algoritmos especificamente direcionados aos eleitores”.

A Ágora e o Algoritmo: Direito e Democracia na Era Digital. Eduardo Appio e Salvio Kotter. Kotter Editoral (184 págs., R$ 49,70) – Compre na Amazon

O coautor, Salvio Kotter, afirma que o livro, fundamentalmente baseado na tese doutoral de Appio, consegue demonstrar que fundamentos principiológicos são capazes de legitimar a jurisdição enquanto força promotora de direitos, e o “Judiciário como ator estrutural no arranjo democrático, não apenas intérprete de normas”, já que “a intervenção judicial pode, de um lado, ultrapassar fronteiras e comprometer o equilíbrio entre poderes, mas, de outro, representar um contrapeso crucial à realização da justiça social”. Pode ser. Mas o que se vê é o “neoconstitucionalismo ‘civilizatório’ haver prometido o paraíso da garantia e da efetividade dos direitos fundamentais e ter entregue a ‘Lava Jato’ e 11 supremos, nem todos sempre amigos do Brasil.”

A agitação salvacionista é própria do discurso político. Do Judiciário espera-se prudência e contenção. Um Ministério Público e um Judiciário de grandes causas salvacionistas acabam por invadir a política. Em contrapartida, são invadidos por ela e sua lógica amigo versus inimigo, que demoniza os adversários, lançando-os às chamas eternas do opróbrio. É o direito penal do inimigo, negação do processo penal constitucional democrático.

Há quem pense e aja como se somente o lavajatismo que vitimou a engenharia pesada brasileira a serviço de interesses estrangeiros fosse nefasto e que é possível um lavajatismo “do bem”. Mas não há lavajatismo do bem. A história não o reconhecerá. Savonarolas os há “à direita” e “à esquerda”, com resultados conhecidos.

Na metáfora de Ulysses Guimarães, o mundo da política é o das nuvens (logo, das tempestades!). O do Judiciário há de ser o do céu de brigadeiro, da segurança jurídica. O reino do Judiciário é o da ­Ágora, não o dos manipuláveis algoritmos. Mas desde o Mensalão já não o é. Quem há de botar o gênio de volta à lâmpada? •


*Advogado em Curitiba e Brasília, professor e mestre em Filosofia do Direito.

Publicado na edição n° 1360 de CartaCapital, em 07 de maio de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O Estado-juiz’





Por:Carta Capital

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