28.3 C
Manaus
quinta-feira, 1 maio, 2025
InícioPolíticaPassos vigiados

Passos vigiados

Date:



Poucas horas depois de obter uma medida protetiva e deixar a Delegacia de Atendimento Especializado às Mulheres de Campo Grande, em Mato Grosso do Sul, Vanessa ­Ricarte, de 42 anos, foi assassinada a facadas pelo ex-noivo, Caio Nascimento. Segundo o inquérito policial, “Vanessa foi surpreendida pela covardia, frieza e ódio de um homem que viu uma mulher (mesmo com medo) romper o ciclo de violência. Caio não aceitou o fim”. Essa tragédia, ocorrida em fevereiro deste ano, se repete diariamente no Brasil, onde o feminicídio atingiu seu maior patamar em 2023, com 1.467 mulheres mortas por razões de gênero, segundo o mais recente Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Especialistas são unânimes: quase sempre se trata de “mortes anunciadas” e, portanto, evitáveis.

Na tentativa de ampliar a proteção às mulheres vítimas de violência, o presidente Lula sancionou, na quinta-feira 24, uma lei que institui o monitoramento de agressores por meio de tornozeleiras eletrônicas. No mesmo dia, outras duas leis voltadas às brasileiras passaram a vigorar. Uma delas prevê sanções para quem discriminar mães, gestantes ou puérperas em processos seletivos de bolsas de estudo no ensino superior, tanto na graduação quanto em programas de pós. A outra aumenta a pena e a multa para crimes de violência psicológica com o uso de Inteligência Artificial ou de outros recursos tecnológicos que alterem a imagem ou a voz da vítima.

A proposta da tornozeleira é evitar que o agressor consiga aproximar-se da vítima. Quando a distância determinada por uma medida protetiva for violada, tanto a mulher quanto a polícia receberão um sinal de alerta. Especialistas celebram as novas medidas, mas temem a falta de recursos públicos para viabilizar o monitoramento. A advogada Alice Bianchini, integrante do Conselho Nacional de Direitos da Mulher, lembra que a tornozeleira para agressores já é utilizada em alguns estados brasileiros. “A nova lei vai padronizar essa determinação”, observa.

A advogada Rosana Rufino, especialista em Direito Antidiscriminatório, acrescenta que o uso da tecnologia é positivo, mas o Estado ainda é ausente no cotidiano de mulheres periféricas – o que dificulta a aplicação da nova lei. “A monitoração reduz os riscos de morte, porque a violência nunca começa com o feminicídio, esse é o último ato de um processo gradual”, afirma. “Primeiro, vêm a violência psicológica, o controle sobre com quem essa mulher anda, onde ela trabalha e as roupas que veste. Depois, surgem as agressões físicas, seguidas de pedidos de desculpa, e o intervalo entre as violências tende a diminuir. Quando a mulher consegue pedir ajuda, normalmente essa escalada já está em estágio avançado.”

Especialistas aplaudem a iniciativa do governo, mas apontam algumas lacunas para colocar a medida em prática

Rufino acredita que a nova norma levará muito tempo para fazer diferença na vida de mulheres em situação de vulnerabilidade social, especialmente nas periferias dos centros urbanos ou em áreas rurais. Há muitos pontos a serem esclarecidos: “Tem previsão orçamentária? Quem vai pagar a conta das tornozeleiras? Haverá verba federal?” Criadora da página ­@Direito­.Delas no Instagram, a também advogada Camila Duarte compartilha a preocupação de sua colega. Ela atua principalmente em municípios com menos de 30 mil habitantes em Minas Gerais e observa, na prática, as limitações das políticas de proteção às mulheres. “A Lei Maria da Penha é considerada pela ONU uma das três legislações mais avançadas do mundo, mas o Estado sempre esbarra em problemas orçamentários e logísticos”, avalia. Segundo ela, muitas ações ainda estão restritas às grandes cidades, enquanto as mulheres do interior continuam desassistidas.

“Não se trata só da tornozeleira. Para colocar essa medida em prática, é preciso investir em treinamento dos profissionais da segurança pública e na manutenção desse equipamento, que custa caro”, diz Duarte. “A própria mulher vítima vai precisar ser instruída sobre como utilizar o sistema. Tudo isso demanda investimentos, e não sabemos de onde virão esses recursos.”

Pesquisadora sênior do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Juliana Brandão pondera que o uso dessa tecnologia não é uma panaceia. “Essa monitoração é importante e pode, de fato, evitar uma violência fatal”, afirma. No entanto, apostar todas as fichas em um equipamento eletrônico “é preocupante, porque a discussão de fundo, sobre a violência estrutural, acaba ficando de lado”, acrescenta. “Precisamos, enquanto sociedade, lidar com esse caldo de cultura que autoriza que as mulheres estejam, de alguma forma, em uma subordinação de direitos, e que isso seja naturalizado.”

Já Anabel Pessôa, professora de Direito da Universidade Federal Rural de Pernambuco e cofundadora do Instituto Maria da Penha, acredita que a prevenção e o trabalho para alterar o comportamento do agressor são medidas indispensáveis para modificar esse “caldo de cultura” mencionado por Brandão. A Lei Maria da Penha determina a inclusão de agressores em grupos reflexivos, mas essa política ainda é aplicada em poucos lugares no Brasil. Sua eficácia, porém, é altíssima e deveria ser observada com mais atenção pelo Poder Público, avalia a advogada. Para uma pesquisa acadêmica, Pessôa estudou a mudança de comportamento de cem homens que, ao longo de dois anos, frequentaram um desses grupos por determinação judicial. “Não houve reincidência na violência doméstica. Apenas três voltaram a ter problemas com a Justiça, mas foi por outras razões.”

O grupo reflexivo funciona como uma espécie de terapia coletiva, na qual os agressores recebem acompanhamento psicológico e tentam, por meio de rodas de conversa, entender os motivos pelos quais reagem com fúria ou agressividade em determinadas situações. “É uma forma de fazer o homem entender o crime que cometeu e responsabilizá-lo. É uma medida muito eficaz e de baixo custo para quebrar esse ciclo de violência.” •

Publicado na edição n° 1360 de CartaCapital, em 07 de maio de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Passos vigiados’





Por:Carta Capital

spot_img
Artigo anterior
Próximo artigo
spot_img
Sair da versão mobile