Com mais de 20 ocupações em dez estados, o MST deu início à Jornada de Lutas em Defesa da Reforma Agrária, conhecida como Abril Vermelho. As lideranças do movimento estão insatisfeitas com o ritmo do programa e criticam a lentidão na destinação de terras às 120 mil famílias acampadas. Nesta entrevista, o ministro do Desenvolvimento Agrário, Paulo Teixeira, reconhece que os resultados de 2023 e 2024 ficaram aquém do esperado, em razão das dificuldades para reconstruir a pasta após o desmonte promovido por Michel Temer e Jair Bolsonaro, mas assegura que o cenário mudou. Se até março apenas 15 mil famílias haviam sido assentadas, a expectativa é dobrar o número até o fim do ano. “Nossa meta é encerrar o mandato com 60 mil famílias assentadas, o mesmo patamar alcançado nos dois primeiros governos do presidente Lula.” Teixeira também detalha as ações para conter a inflação dos alimentos, foco de angústia para a população de baixa renda, mesmo convencido de que o problema não está no campo. “Houve, por exemplo, quebra de safra do café no Vietnã e uma praga que devastou plantações de cacau na África. Mas, sinceramente, nenhuma praga é pior que Trump, especialmente depois que ele declarou essa guerra tarifária de consequências imprevisíveis. E ainda há brasileiros que desfilam por aí com um boné dele na cabeça.” A íntegra da entrevista, em vídeo, está no canal de CartaCapital no YouTube.
CartaCapital: A reforma agrária está emperrada?
Paulo Teixeira: O Abril Vermelho começou no governo Fernando Henrique Cardoso, marcado pelo Massacre de Eldorado dos Carajás. Desde então, o MST promove uma jornada de lutas nesse período. Não é algo inédito, ocorre todos os anos. Na verdade, fomos nós que retomamos o programa de reforma agrária, após encontrar um cenário de terra arrasada. O golpe de 2016 tinha uma agenda política. Um de seus objetivos era impedir novos assentamentos e a demarcação de terras indígenas e quilombolas. Bolsonaro não apenas deu continuidade a esse projeto, como o radicalizou, incentivando fazendeiros a se armarem contra os sem-terra. A primeira entidade que recebi no meu gabinete foi a Comissão Pastoral da Terra (CPT), profundamente alarmada com o aumento dos conflitos fundiários e das mortes no campo. O Incra estava esvaziado, sem recursos para nada.
“A reforma agrária irrita profundamente as elites brasileiras”
CC: O senhor recebeu um orçamento irrisório no primeiro ano de governo, não?
PT: Sim, não havia um centavo disponível para a obtenção de terras. Somente a partir do segundo ano o orçamento começou a ser recomposto. Agora, contamos com 1,1 bilhão de reais para a aquisição de propriedades que serão destinadas à reforma agrária.
CC: E quantas famílias foram efetivamente assentadas?
PT: Até março, 15 mil. Vamos duplicar isso até o fim do ano. Nossa meta é encerrar os quatro anos de mandato com 60 mil famílias assentadas, o mesmo patamar alcançado nos dois primeiros governos de Lula – com a diferença de que, agora, há menos recursos. Naquela época, não havia teto de gastos públicos, o Parlamento não havia sequestrado parte do orçamento com as emendas. Além disso, o preço das terras aumentou. Mesmo com todas as dificuldades, estamos avançando. Passamos a adotar outras estratégias para viabilizar a reforma, como a adjudicação de terras de grandes devedores da União. Donos de usinas falidas ou em processo de recuperação judicial estão entregando parte de suas áreas. Da mesma forma, estamos utilizando terras públicas e imóveis que fazem parte do patrimônio de bancos estatais.
CC: Por que existem tantos empecilhos à reforma agrária no Brasil?
PT: Repare na coincidência: todo presidente que realmente tentou promovê-la acabou derrubado. Getúlio Vargas foi levado ao suicídio. João Goulart foi deposto pelos militares e morreu no exílio. Lula amargou 580 dias de prisão. Dilma Rousseff foi destituída por um golpe parlamentar. A reforma agrária irrita profundamente as elites brasileiras, que carregam um DNA reacionário. Elas não querem dividir terra, repartir riqueza nem compartilhar o poder. E terra, no Brasil, é sinônimo de poder. Por isso, considero absolutamente legítima a pressão do MST. O contrário é que seria estranho: indicaria uma sociedade apática, sem luta organizada para transformar essa realidade excludente. O Brasil, não podemos esquecer, está sempre entre os líderes dos rankings mundiais de desigualdade social e concentração fundiária.
Fatores externos. O dólar e quebras de safra em outros países influenciam os preços – Imagem: Isabella Mayers/Prefeitura de Curitiba
CC: O que o governo tem feito para conter a violência no campo?
PT: Recriamos a Ouvidoria Agrária e a Câmara de Conciliação do Incra. Ambas atuam na identificação dos conflitos mais agudos e na adoção de políticas para evitar a escalada da violência. Uma dessas políticas é justamente a desapropriação de terras para assentamentos. O Conselho Nacional de Justiça também criou um núcleo de conciliação, e temos mantido uma excelente relação com ele, algo que não existia no governo anterior. Graças a essa articulação, conseguimos reverter muitos despejos e, em vários casos, encontrar soluções definitivas. Os resultados não tardaram a aparecer. Segundo a CPT, foram registradas 554 ocorrências de violência contra a pessoa em 2023, uma redução de 34% em relação ao ano anterior. Dados preliminares de 2024 indicam uma diminuição expressiva no número de assassinatos. Muitos dos nossos assentamentos chegaram a ser invadidos por grileiros, mas acionamos a Justiça e conseguimos recuperá-los.
CC: Reforma agrária não se faz somente com distribuição de terras. O que o governo tem feito para apoiar os assentados?
PT: De fato, reforma agrária é terra, mas também é crédito, apoio técnico. Destinamos 1,5 bilhão de reais para financiar a instalação e a produção dos assentados. Criamos uma nova linha do Pronaf e lançamos o Desenrola Rural, voltado à renegociação das dívidas dos pequenos produtores. Firmamos convênios com universidades e institutos federais para garantir assistência técnica. Retomamos as compras públicas, por meio de iniciativas como o Programa de Aquisição de Alimentos. Hoje, ao menos 30% da merenda escolar é fornecida pela agricultura familiar. Queremos investir em tecnologia, na mecanização da produção. A ideia é que os assentamentos nasçam em berço de ouro, com todas as oportunidades.
“O problema (da inflação) não está no campo”
CC: A inflação dos alimentos tem assombrado as famílias mais pobres. O que o governo pode fazer para conter a escalada dos preços?
PT: O problema não está no campo. Nós lançamos o maior Plano Safra da história do Brasil. A Conab acaba de anunciar uma produção recorde de grãos: mais de 330 milhões de toneladas em 2025. A inflação dos alimentos decorre de diversos fatores, mas o principal é a forte variação cambial desde a vitória de Donald Trump nas eleições dos EUA. O dólar, que estava cotado a 5,70 reais, chegou a picos de 6,30. Isso tem um impacto direto, porque as commodities agrícolas, como soja, carne e café, são negociadas em dólar na B3, na Bolsa de Chicago, em todo o mundo. Quando o dólar se valoriza, encarece os insumos importados, como fertilizantes, defensivos e embalagens. O governo Lula tomou medidas importantes para reduzir a pressão cambial. Hoje, o País tem uma meta de déficit zero, as contas públicas estão equilibradas. Ainda assim, há outros fatores que influenciam os preços e fogem ao nosso controle. Houve, por exemplo, quebra de safra do café no Vietnã e uma praga que devastou plantações de cacau na África. Mas, sinceramente, nenhuma praga é pior do que Trump, especialmente depois que ele declarou essa guerra tarifária de consequências imprevisíveis. E ainda há brasileiros que desfilam por aí com um boné dele na cabeça.
CC: Os mesmos que criticam a alta dos preços de alimentos…
PT: Veja a hipocrisia. Mas gostaria de contar uma novidade. Estamos preparando, para a COP30, o maior programa de reflorestamento do mundo, que batizamos de Florestas Produtivas. A ideia é recuperar áreas degradadas da Amazônia com o plantio de espécies nativas que garantam retorno econômico aos agricultores – maior do que o da soja ou da pecuária. Produtos como açaí, cacau, dendê e pimenta-do-reino estão muito valorizados no mercado e podem ser cultivados em sistemas agroflorestais, de forma sustentável. Para ter uma produção forte de açaí, é preciso manter a floresta de pé. É possível conciliar geração de renda e preservação ambiental, e é exatamente isso que estamos propondo. •
Publicado na edição n° 1358 de CartaCapital, em 23 de abril de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Terra dividida’
Por:Carta Capital