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sexta-feira, 9 maio, 2025
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Manancial de discórdias – CartaCapital

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Idealizados por Dom Pedro II ainda no período do Brasil Império, e com as obras iniciadas há quase 20 anos, no segundo governo Lula, os canais da transposição do Rio São Francisco serão entregues à iniciativa privada. Recentemente, o Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional (MIDR) anunciou que pretende publicar, em agosto deste ano, o edital da parceria público-privada e realizar o leilão em novembro, para definir a empresa concessionária que administrará a estrutura pelos próximos 30 anos.

Vários governadores manifestaram apoio à iniciativa, mas especialistas alertam que a privatização pode encarecer o custo da água para a população. O projeto visa abastecer 12 milhões de habitantes em 390 municípios nordestinos. Apontada como a maior obra de segurança hídrica da América Latina, a transposição conta com dois eixos – Norte e Leste – formados por canais que atravessam os estados de Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará. A megaestrutura ainda está longe, porém, de alcançar a eficácia prometida na retomada do projeto, em 2007.

Embora a obra esteja praticamente pronta, ela carece de infraestrutura de bombeamento para levar a sonhada água às comunidades castigadas pela seca. Cícero Félix, coordenador-executivo da Articulação do Semiárido (ASA), acompanha a transposição do Rio São Francisco desde os primórdios e afirma que a iniciativa não tem beneficiado a população mais vulnerável. “O objetivo nunca foi fazer a água chegar às famílias dispersas pelo Semiárido, e sim expandir um modelo de desenvolvimento baseado na fruticultura irrigada, no cultivo de cana-de-açúcar e na atividade industrial. É claro que alguns moradores também são abastecidos, mas as prioridades sempre foram econômicas”, critica Félix, ao apontar os impactos socioambientais da obra e as contradições do modelo de parceria público-privada. “O Estado brasileiro investe bilhões na estruturação de uma obra faraônica e depois a entrega à iniciativa privada para obter lucro?”

O maior projeto de segurança hídrica da América Latina é acusado de priorizar interesses econômicos e deixar a população em segundo plano

De acordo com Eduardo Tavares, secretário nacional de Fundos e Instrumentos Financeiros do MIDR, a empresa que assumir a administração da transposição será responsável pela operação e manutenção da estrutura, além de investir 2,76 bilhões de dólares – o equivalente a 16 bilhões de reais, valor superior aos 14 bilhões gastos pelo governo federal na obra. Tavares acrescenta que há um acordo entre a União e os quatro estados beneficiados, segundo o qual os governadores devem oferecer contrapartidas para garantir mais recursos à expansão da rede de abastecimento.

“Cada estado tem uma demanda específica e vai participar de forma gradativa, conforme o que foi acordado, com uma transição ao longo de cinco anos”, explicou Tavares durante o PPP Américas 2025, principal evento sobre parcerias público-privadas da América Latina e do Caribe, organizado pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento e realizado em abril, no Peru. “Serão dois sistemas paralelos, porque não haverá relação direta entre os estados e o concessionário. Isso traz mais segurança.”

Coordenador da Câmara Temática de Recursos Hídricos e Saneamento do Consórcio Nordeste e secretário de Recursos Hídricos e Saneamento de Pernambuco, José Cirilo considera a iniciativa uma medida inteligente. “Foi uma forma encontrada pelo ministério para contratar serviços de longo prazo, mantendo sob tutela da União o controle do processo”, afirma. Já Roberto Malvezzi, integrante da Comissão Pastoral da Terra e da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), critica a proposta. Segundo ele, o lucrativo “mercado da água” estaria por trás da parceria público-privada – uma ideia lançada ainda no governo Bolsonaro e que agora avança sob a gestão Lula. “Quem vai pagar essa água, em grande parte, é a população, no uso doméstico, já que o abastecimento industrial e das atividades de irrigação, para ser viável, precisa ser subsidiado. Encontraram uma forma de privatizar a transposição”, alerta.

Celeuma. Dom Cappio fez greve de fome para tentar impedir a obra, que levou água a diversas regiões do Nordeste, mas ainda não chegou a muitas comunidades – Imagem: Evaristo Sá/AFP, Arquivo/Codevasf e Tovinho Régis

Malvezzi também cobra a revitalização do rio que abastece os canais, uma promessa jamais cumprida, lamenta. “O São Francisco perdeu 40% do espelho d’água. Isso significa, praticamente, 40% a menos de volume hídrico. Temos um rio cada vez mais decadente, os estados não têm responsabilidade alguma, e os deputados do Nordeste só pensam em usufruir, sem qualquer compromisso com a recuperação ambiental.”

Na avaliação de João Suassuna, pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco e integrante da Academia Brasileira de Ciência Agronômica, o “Velho Chico” está exaurido, com sua capacidade hídrica comprometida. “A água é um recurso finito e precisa ser tratada com responsabilidade. Tentar extrair do São Francisco – um rio já moribundo – mais do que ele pode oferecer é uma aposta arriscada e, em última análise, insustentável”, alerta. “O projeto da transposição, embora concebido com a nobre intenção de combater a seca no Nordeste, sofre de um vício de origem: a desconexão entre a disponibilidade real de água e as demandas projetadas. O rio não possui volume suficiente para sustentar as retiradas previstas sem comprometer seu equilíbrio ambiental e o abastecimento das populações ribeirinhas. Insistir em ampliar esse bombeamento é ignorar os alertas técnicos e comprometer o futuro de milhões de habitantes.”

Cícero Félix destaca que parte significativa da perda de água do Velho Chico ocorre por evaporação, já que os canais dos dois principais eixos da transposição são abertos. “Eles estão localizados no Semiárido, uma região com evapotranspiração potencial em torno de 3 mil milímetros. Quanto mais você expõe a água, maior é a perda. Então, boa parte da água que sai do rio não chega ao destino final porque se perde no caminho”, explica.

Secretário do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Remanso, na Bahia, o agricultor João Ferreira Neto acusa a Codevasf de não concluir obras iniciadas há mais de dez anos, como a instalação de várias caixas d’água na região do Largo do Sobradinho, às margens do São Francisco, que nunca chegaram a ser utilizadas. Segundo ele, as estruturas estão abandonadas, sem uso – o mesmo destino de um sistema de tubulação também instalado na região como parte do projeto, mas por onde nunca correu sequer uma gota d’água. “O que salva a região são as cisternas para captação da água da chuva. Da parte da transposição, nunca tivemos água encanada, um sonho da população ribeirinha”, diz. “Com a privatização, a tendência é piorar, porque as empresas só querem saber de lucro.”

Para o pesquisador Ubiratan Félix, engenheiro civil e professor do Instituto Federal da Bahia, a transposição, além de não resolver a questão da convivência com a seca, ainda fragilizou o sistema de conservação ambiental. “A obra beneficiou apenas um setor muito pequeno, que são os irrigantes, em especial a economia de exportação”, diz. “Era preciso, antes, ter feito a restauração de toda a extensão do rio, começando por reconstruir a mata ciliar e o desassoreamento, porque em alguns pontos formaram bancos de areia, tornando o rio não navegável em alguns trechos.”

O projeto de transposição do Rio São Francisco é cercado de polêmicas, que vão desde a greve de fome realizada em 2007 por dom Luiz Flávio Cappio, então bispo do município de Barra, na Bahia, até a disputa política em torno da paternidade da obra. Em março deste ano, o presidente Lula esteve no Rio Grande do Norte para inaugurar a Barragem de Oiticica, que integra o eixo Leste da transposição – um dos poucos trechos que ainda estavam pendentes. Na ocasião, o petista garantiu que até o fim do seu mandato, em dezembro de 2026, todo o projeto estará em pleno funcionamento. Segundo cálculos de João Suassuna, 70% da obra foi executada nos governos Lula, Dilma e Temer, e somente 30% durante a gestão Bolsonaro, um presidente que nunca escondeu seu preconceito em relação ao Nordeste e usou essa pequena parcela de contribuição dada à transposição para tentar assumir a paternidade da obra.

Especialistas alertam que o “Velho Chico” está exaurido e com a capacidade hídrica comprometida

É fato que a transposição do São Francisco já levou água a diversas regiões do Nordeste, inclusive a grandes centros urbanos, como Campina Grande (PB), Caruaru (PE) e Fortaleza (CE), além de abastecer o Porto de Pecém, no Ceará. A água ainda não chegou, porém, a muitas localidades menores, incluindo comunidades nas imediações do Velho Chico.

“O desafio sempre foi abastecer as comunidades difusas, onde a transposição nunca chegou, inclusive em trechos localizados ao longo dos próprios canais. A nossa esperança estava neste governo, porque nos anteriores a gente sabia que não dava para criar expectativa. Era necessário concluir as obras iniciadas no Vale do São Francisco e no Semiárido, que nunca foram finalizadas”, critica Roberto Malvezzi. De fato, o maior obstáculo da transposição segue sendo a viabilização da infraestrutura necessária para levar a água até o destino final. Adutoras, barragens e canais de médio e pequeno porte ainda estão em fase de construção pelos governos estaduais, em parceria com a União.

O outro entrave é o sistema de bombea­mento, ainda não implantado. “Os canais estão prontos, só que para transportar a água é necessário ­continuar avançando nos dispositivos de bombeamento. O que temos hoje é a execução de obras civis. Falta instalar os equipamentos. Isso depende de recursos vultosos e deve demorar um tempo ainda”, explica Cirilo. “A transposição é estratégica para o Nordeste porque garante segurança hídrica e ajuda na produção, gerando emprego e renda. Vai ajudar a alavancar a economia da nossa região. A prioridade é atender a população, mas também abastecerá a agropecuária e outras atividades industriais”, completa Auricélio Costa, diretor técnico do Instituto de Gestão de Água do Rio Grande do Norte, elogiando a iniciativa do governo em optar pela PPP.

Dados do Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional confirmam que os eixos Norte e Leste da transposição estão 100% concluídos e em condições operacionais, assim como o ramal do Agreste. Os ramais Apodi e Salgado estão com obras em execução, enquanto o Piancó está na fase de licitação e avaliação de impacto ambiental. Já Entremontes encontra-se em fase de estudos de viabilidade técnica, econômica e ambiental. No fim de abril, representantes da pasta participaram do Roadshow Brasileiro-Europeu de Infraestrutura, Energia e Economia Circular, evento onde foi oferecido o projeto de transposição para PPP. •

Publicado na edição n° 1361 de CartaCapital, em 14 de maio de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Manancial de discórdias’





Por:Carta Capital

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