O fusível foi trocado, mas a pane governista persiste. Mesmo sem ter sido citado nas investigações da Polícia Federal sobre o esquema de descontos indevidos em benefícios do INSS, o ministro da Previdência Social, Carlos Lupi, não conseguiu oferecer respostas satisfatórias sobre a demora para tomar providências e impedir os bilionários desvios identificados. Após nove dias de fritura, o pedetista pediu demissão na sexta-feira 2. Logo após a amarga conversa com o aliado de mais de duas décadas, Lula apressou-se em convidar o ex-deputado Wolney Queiroz, então secretário-executivo da pasta, para assumir o cargo. Uma edição extra do Diário Oficial da União oficializou, no mesmo dia, a exoneração de Lupi e a nomeação de Wolney – tudo resolvido rapidamente, em questão de horas.
A pressa do presidente em dar uma satisfação à sociedade é justificável. Estima-se que o esquema tenha desviado 6,3 bilhões de reais de aposentados e pensionistas entre 2019 e 2024. Embora o governo Lula tenha assumido certo protagonismo na investigação do escândalo – as revelações são fruto de uma longa apuração da PF e da Controladoria-Geral da União, dois órgãos subordinados ao Executivo –, pesou o fato de Lupi ter sido alertado sobre as suspeitas de fraude muito antes, em meados de 2023, sem tomar medidas concretas para conter os desvios até março do ano seguinte. Somente então o INSS passou a adotar novas regras para autorizar os descontos em folha, exigindo termos de adesão, biometria e documentos de identificação. Ainda assim, as cobranças indevidas continuaram ao longo dos meses, atingindo a impressionante cifra de 2,6 bilhões de reais em 2024, aumento de 273% em relação ao último ano de Jair Bolsonaro.
Alerta. À espera de ressarcimento, beneficiários passaram a ser assediados por golpistas – Imagem: Hélvio Romero/Estadão Conteúdo
Foi um prato cheio para a oposição. Rapidamente, deputados bolsonaristas coletaram as assinaturas necessárias para pedir a instalação da “CPI do Roubo dos Aposentados” na Câmara. Ainda que as fraudes tenham começado na gestão de Michel Temer e se amplificado no governo Bolsonaro, quando o INSS foi loteado pelo Centrão e abriu as portas para uma miríade de entidades inidôneas, eles buscam a todo custo associar o escândalo à imagem de Lula, que vinha apresentando uma tímida recuperação da popularidade no início de abril. É possível que todo o esforço para domar a inflação dos alimentos e melhorar a comunicação do governo, a partir da nomeação do ministro Sidônio Palmeira, tenha se perdido em meio à massiva campanha bolsonarista que retrata o presidente da República como um “ladrão de velhinhos” nas redes sociais.
Autor do pedido de CPI, o deputado Coronel Chrisóstomo, do PL de Bolsonaro, intensificou a pressão pela demissão de Lupi ao protocolar o requerimento para instalar a comissão. “Não dá para uma CPI investigar com ele dentro do ministério, fazendo seus acordos contra as investigações. Minha sugestão é que o ministro peça para sair”, afirmou na quarta-feira 30, dois dias antes da capitulação do pedetista. Como o deputado Mário Heringer, líder do PDT na Câmara, havia antecipado, o partido decidiu deixar a base do governo após a demissão de Lupi. “Não entramos em caminho de vingança. Nossa posição é de independência”, esclareceu. Já Ciro Gomes, presidenciável do PDT nas eleições de 2018 e 2022, acusou Lula de sacrificar um aliado que não está sendo acusado de corrupção, e sim de suposta omissão ou falha administrativa: “Sabe para que serve um fusível na casa? Quando a tensão dá um pico, ele queima para proteger a fiação”.
A oposição coletou as assinaturas necessárias para a criação de uma CPI
Curiosamente, Heringer acrescentou que a bancada do PDT apoia a instalação da CPI, desde que fique expresso que ela investigará os malfeitos identificados pela PF e pela CGU desde 2018 – e não apenas durante a gestão de Lupi. Na prática, isso significa que diversos integrantes do alto escalão do governo Bolsonaro, responsáveis pelas nomeações de presidentes do INSS, poderão ser convocados a prestar esclarecimentos. Entre eles figuram o senador Rogério Marinho, ex-secretário da Previdência; Onyx Lorenzoni e José Carlos Oliveira, ex-ministros do Trabalho e da Previdência; e até mesmo Paulo Guedes, o “Posto Ipiranga” do ex-presidente.
Gleisi Hoffmann, ministra das Relações Institucionais, expôs nas redes sociais as digitais do ex-ministro na trama: “Assim que assumiu o governo, Bolsonaro extinguiu o Ministério da Previdência e jogou o INSS ao comando de Paulo Guedes. No mesmo ano, 2019, começou a ser montado um esquema de associações para desconto em folha nos benefícios de aposentados e pensionistas. Por meio de lei, Bolsonaro impediu que, até o último dia do seu governo, os descontos fossem auditados para identificação de irregularidades. O esquema cresceu e beneficiou muitos corruptos”.
Movimentos. Coronel Chrisóstomo mobiliza a claque bolsonarista. Waller Júnior elabora plano para ressarcir as vítimas do esquema – Imagem: Marcos Oliveira/Agência Senado e Kayo Magalhães/Agência Câmara
Por ora, o presidente da Câmara, Hugo Motta, tem refreado o ímpeto da oposição. Em várias ocasiões, o deputado do Republicanos lembrou que existem “12 pedidos de CPI na frente”, sinalizando que não está disposto a furar a fila. Não por acaso, os bolsonaristas fizeram um esforço adicional para coletar assinaturas de senadores para a instalação de uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito. Neste caso, caberia ao presidente do Senado, Davi Alcolumbre, do União Brasil, decidir sobre o início dos trabalhos.
Ao contrário do presidente da Câmara, Alcolumbre ainda não se manifestou sobre o tema. O senador acabou de emplacar o nome do novo ministro das Comunicações, Frederico Siqueira Filho, ex-presidente da Telebras. Fred, como é conhecido, entrou no lugar de Juscelino Filho, que entregou o cargo após a Procuradoria-Geral da República denunciá-lo por desvios em emendas parlamentares, um escândalo que remete ao período em que era deputado federal – logo, sem relação com o atual governo. Mas a nomeação do apadrinhado não satisfez o apetite de Alcolumbre. Ele também negocia a indicação de diretores de agências reguladoras e faz campanha pela demissão do ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, seu desafeto. O pedido da CPMI do INSS só aumenta o poder de barganha de Alcolumbre.
A bancada do PDT na Câmara deixou a base do governo e declarou “posição de independência”
A demissão de Lupi foi precipitada por um gesto de Lula. Dois dias antes, o presidente anunciou o novo presidente do INSS sem a participação do então ministro da Previdência. À frente do instituto, o procurador federal Gilberto Waller Júnior tem a difícil tarefa de organizar o ressarcimento dos beneficiários lesados. Seu antecessor, Alessandro Stefanutto, e outros cinco servidores do INSS foram afastados no momento em que a operação da PF e da CGU cumpria mais de 200 mandados de busca e apreensão. O grupo é suspeito de receber propina para facilitar a atuação dos fraudadores, que descontavam valores mensais de aposentados e pensionistas sem o conhecimento das vítimas, como se fossem contribuições a associações representativas. Essas entidades alegavam oferecer assistência jurídica e vantagens em planos de saúde ou seguros funerários, mas verificou-se que muitas delas nem sequer tinham estrutura para prestar tais serviços. Pior, auditores da CGU entrevistaram 1.273 beneficiários do INSS e constataram que 97,6% deles não haviam autorizado os descontos associativos.
Na terça-feira 6, Waller Jr. esclareceu que os valores descontados em abril serão devolvidos agora, em maio, diretamente no pagamento dos benefícios. Nada de Pix nem de depósito em conta – o novo presidente do INSS não quer deixar brechas para a atuação de golpistas, que andam assediando aposentados desavisados. O problema é como viabilizar a restituição dos valores desviados nos meses e anos anteriores. O governo estuda realizar o reembolso de uma só vez, a partir de um calendário predefinido, que leve em conta a data do aniversário dos beneficiários. O Executivo arcaria com os custos e, depois, cobraria judicialmente das entidades fraudadoras o ressarcimento aos cofres públicos. Um dos entraves é a comprovação de que os descontos associativos foram efetivamente feitos sem o consentimento dos segurados.
Desvios. Os descontos ilegais somam mais de 6 bilhões de reais, estima a PF – Imagem: Polícia Federal
Lula pretendia anunciar o plano de ressarcimento antes de embarcar, na noite da terça-feira 7, para uma viagem oficial à Rússia e à China. A Secretaria de Comunicação da Presidência não descarta a possibilidade de o anúncio ser feito sem a presença do chefe do Executivo. Até a conclusão desta reportagem, o governo ainda não havia apresentado as medidas.
É possível que este seja o primeiro grande teste do novo titular da Previdência. Wolney Queiroz assumiu o cargo sob muitas contestações, a começar pelo fato de ter sido o número 2 de Lupi na pasta. A oposição bolsonarista também explora à exaustão o fato de o novo ministro ter sido um dos autores do texto que, em 2021, adiou o prazo de fiscalização dos descontos de mensalidades de associações e sindicatos na folha do INSS. À época, ele era deputado federal e líder da bancada do PDT na Câmara. Wolney foi um dos signatários de uma emenda que prorrogou a obrigatoriedade de revalidação anual desses descontos, prevista em uma Medida Provisória editada por Jair Bolsonaro. No ano seguinte, uma nova lei aprovada pelo Congresso e sancionada pelo então presidente retirou de vez da legislação a exigência de revalidação periódica. •
Publicado na edição n° 1361 de CartaCapital, em 14 de maio de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Fusível descartado’
Por:Carta Capital