Conter a expansão do crime organizado pelo País e recuperar pontos preciosos nas pesquisas de avaliação do governo são duas metas da equipe Lula que caminham de mãos dadas. A crescente sensação de insegurança que aflige brasileiros de todas as regiões e estratos sociais bem como a insatisfação da população com atuação da gestão petista nessa área ficaram evidentes em duas sondagens divulgadas em março. Na primeira, a maior parte dos entrevistados pela Quaest (29%) apontaram a violência como sua maior preocupação. Na segunda, realizada pelo Ipec, 62% classificaram como ruim ou péssimo o desempenho de Lula na segurança pública.
O entendimento no Executivo, compartilhado pela cúpula do Judiciário, é que respostas à população precisam ser dadas de forma rápida, e ambos os poderes fizeram importantes movimentos durante a semana nesse sentido. Após uma série de conversas travadas por Lula no último mês com os ministros Ricardo Lewandowski (Justiça), Rui Costa (Casa Civil) e Gleisi Hoffmann (Relações Institucionais), o governo finalmente apresentou ao Congresso Nacional, na terça-feira 8, a Proposta de Emenda à Constituição da Segurança Pública, que tem o ambicioso objetivo de alinhar as ações federais às políticas estaduais para o setor. Quatro dias antes, o Supremo Tribunal Federal estabeleceu as regras definitivas da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental que disciplina as incursões policiais nas comunidades do Rio de Janeiro, a ADPF das Favelas.
Lewandowski e Hoffmann apresentaram a PEC aos líderes partidários durante um café da manhã na residência do presidente da Câmara, Hugo Motta, do Republicanos. A proposta consolida o Sistema Único de Segurança Pública (SUSP), que dorme na gaveta desde 2018 e prevê a integração entre União e entes federados no planejamento e execução de políticas para o setor. Também inclui na Constituição Federal o Conselho Nacional de Segurança Pública e Defesa Social, composto pelas três esferas de governo e por representantes da sociedade civil. Outras novidades são a ampliação do escopo de atuação da Polícia Federal, com a inclusão de ações contra milícias privadas e crimes ambientais, e a criação da Polícia Viária Nacional, em substituição às atuais Polícia Rodoviária Federal e Polícia Ferroviária Federal, para atuar na proteção de bens, serviços e instalações da União e também auxiliar os estados em operações conjuntas.
Governadores de partidos da oposição acusam o governo federal de invadir a seara alheia para concentrar poder
Apesar do compromisso assumido por Motta de dar “total prioridade ao texto”, o governo não terá facilidade para aprová-lo. Desde o ano passado, Lewandowski, responsável pela elaboração da proposta, tenta contornar a oposição de governadores bolsonaristas, como Tarcísio de Freitas (São Paulo), Cláudio Castro (Rio de Janeiro), Romeu Zema (Minas Gerais), Ronaldo Caiado (Goiás) e Ratinho Jr. (Paraná). Para atenuar as críticas de que o governo federal estaria se metendo em seara alheia, foi incluído um trecho para ressaltar que “as atribuições cabíveis à União não excluem as competências comuns e concorrentes dos demais entes federativos”.
O ministro da Justiça também fez uma concessão aos prefeitos com a inclusão de última hora, no texto da PEC, das guardas municipais como forças de segurança listadas na Constituição Federal. A transformação das guardas em corporações policiais é uma bandeira política do carioca Eduardo Paes, do PSD, e do paulistano Ricardo Nunes, do MDB.
Agora, o texto será enviado à Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, onde o governo terá de se esforçar para não deixar a pauta ser sequestrada pelos bolsonaristas. É apenas o primeiro pedágio da longa viagem. “Vamos esvaziar todas as tentativas de concentrar poderes nas mãos da União”, adianta o deputado Paulo Bilynskyj, do PL, presidente da Comissão de Segurança Pública, que também analisará a proposta. Apesar dos pesares, Hoffmann, que estará à frente das negociações no Congresso, diz acreditar que a PEC “terá uma boa tramitação”.
Rio de Janeiro. A ocupação militarizada de comunidades não parece ser a solução – Imagem: Redes Sociais/PMERJ
Em nota, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) avaliou como “positiva” a apresentação da PEC, por ser “a primeira vez desde a redemocratização que o governo federal sugere mudanças no modelo constitucional de funcionamento da segurança pública do País”. A entidade lembra que, desde sua promulgação em 1988, a Constituição já foi alterada 135 vezes, mas apenas duas dessas mudanças miravam na segurança pública: “O texto avança sobre pontos importantes desse modelo ao propor uma integração e coordenação maiores entre União, estados e municípios. A articulação entre os diversos entes da federação pode funcionar como ponto de partida para um sistema de políticas públicas para o setor”.
Embora trate especificamente do Rio de Janeiro, a definição pelo STF das regras contidas na ADPF das Favelas é também uma medida de alcance nacional por criar jurisprudência sobre incursões policiais em comunidades pobres. As medidas anunciadas por Luís Roberto Barroso, presidente da Corte, também preveem a ampliação da participação da PF, que deverá atuar em conjunto com as forças de segurança locais nas investigações sobre crimes interestaduais ou internacionais, como a entrada de armas e drogas no Rio. O anúncio trouxe outras novidades, como a obrigatoriedade da realização de autópsias em casos de morte decorrente de intervenção policial e do uso de câmeras nas viaturas. O STF recuou, porém, em alguns pontos, ao permitir novamente o uso de helicópteros para caçar bandidos e a utilização de escolas e postos de saúde como base para operações policiais.
Um ponto delicado da ADPF é a proposta de elaboração de um plano conjunto para recuperar territórios dominados pelo crime organizado. A ideia é entrar nas comunidades não somente com a força repressiva, mas também com ações sociais estruturantes promovidas pelo Estado. Qualquer semelhança com o fracassado projeto das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), criado no governo de Sérgio Cabral, não é mera coincidência: “O Rio tem um péssimo histórico de ocupação territorial pelas polícias. É uma lástima que os ministros não tenham levado isso em consideração”, comenta o deputado federal Tarcísio Motta, do PSOL. Ele afirma que as organizações de direitos humanos que figuram como amicus curiae nessa discussão nem sequer foram chamadas a opinar sobre o tema.
A proposta do STF de retomar territórios dominados pelo crime parece uma reedição do fracassado modelo das UPPs de Cabral
“O Estado entrar com serviços é uma ideia linda, mas que só traria benefícios a longo prazo”, acrescenta o sociólogo Ignacio Cano, do Laboratório de Análise da Violência da Uerj. No entanto, para o Poder Público recuperar o controle territorial, é preciso manter um policiamento ostensivo nas favelas: “Seria preciso mudar a relação entre a polícia e a comunidade e, idealmente, descriminalizar as drogas para que deixassem de ser o ponto neurálgico do comércio do crime”.
Coordenador do FBSP, Renato Sérgio de Lima ressalta que o controle territorial por parte de facções também se deve a um domínio econômico, e não meramente pela força das armas: “Precisamos enfrentar o crime, mas polícia subindo morro e sendo letal, com certeza, não é a melhor solução, muito pelo contrário. A polícia precisa se fazer presente, mas tem que entrar com inteligência, investigação e capacidade de ação, e não simplesmente fazendo operações nas quais o resultado morte é muito alto”.
A vereadora Monica Benicio, do PSOL, reconhece que “a existência de territórios sob o domínio de facções de traficantes ou milícias é inaceitável e precisa ser enfrentado”, mas ressalta que não há mais espaço para a repetição de erros do passado. “A história recente do Rio mostra que a lógica da ocupação militarizada, como foi com as UPPs, fracassou não apenas por falta de investimento social, mas porque partiu de uma concepção autoritária e higienista da favela. Sempre foi uma presença seletiva, violenta e racista.” •
Publicado na edição n° 1357 de CartaCapital, em 16 de abril de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Trincheira aberta’
Por:Carta Capital