O sentimento de reparação histórica move os pesquisadores responsáveis pela escavação de um antigo cemitério de escravos e marginalizados, ativo entre os séculos XVIII e XIX, localizado abaixo do estacionamento da Santa Casa de Misericórdia de Salvador. Os estudiosos estimam em mais de 100 mil os restos humanos ali soterrados. Em dez dias de pesquisa de campo, foram encontrados partes de ao menos três corpos, numa profundidade de 2,8 metros, o que leva a crer que o local passou por vários processos de aterramento. “Pela nossa experiência em arqueologia e em aterros em Salvador, esperava-se encontrar o material em 1 metro e meio, no máximo. Deparar com quase 3 metros de profundidade mostra que a área foi gradativamente ocupada e usada também com o intuito de apagar o que se tinha no subsolo”, avalia Jeanne Dias, responsável pela escavação.
A localização exata do Cemitério Campo da Pólvora foi redescoberta por Silvana Olivieri, doutoranda em Arquitetura pela Universidade Federal da Bahia, após o cruzamento de três mapas históricos. A investigação começou há cerca de um ano e, de início, segundo Olivieri, a Santa Casa resistiu em colaborar com a pesquisa, motivo pelo qual foram acionados o Iphan e o Ministério Público. Segundo a pesquisadora, só no fim de março último a instituição liberou a área para análise, ao assinar um termo de colaboração. “Nessa primeira fase, o estudo tem caráter diagnóstico para comprovar que os restos mortais estão lá. Agora que a gente confirmou o achado, o próximo passo é fazer uma grande pesquisa em toda a área, o que vai demandar muito tempo para ser concluída.” Documentos revelam que os cadáveres eram enterrados em covas rasas e coletivas, um tratamento muito comum dispensado aos escravos naquele período. Originalmente, o cemitério era administrado pela Câmara Municipal e servia para enterrar os africanos pagãos, não convertidos ao catolicismo.
Estima-se que mais de 100 mil restos mortais se espalham pelo local
A Santa Casa afirma guardar o arquivo com todos os registros das identidades dos mortos. Diz ainda que tem colaborado com a pesquisa. “Temos um Centro de Memória que salvaguarda o registro de todas essas pessoas, principalmente os escravizados. Não cabe falar em apagamento, porque essa documentação, que são os livros de Banguê, desde 2009 foi nomeada pela Unesco como Memória do Mundo”, rebate a historiadora Rosana Souza, coordenadora do Patrimônio Cultural da instituição. “A gente não está diminuindo o trabalho dos pesquisadores, mas a Santa Casa ainda não teve conhecimento do laudo e precisa entender sobre o achado para poder manifestar-se. Por enquanto, tudo ainda é muito confuso, sem saber o que esses vestígios significam.”
A descoberta do Cemitério Campo da Pólvora estimulou uma rede nacional para identificar sítios semelhantes ao redor do País. “Estamos falando de um processo amplo de recuperação de uma dimensão da história recente do Brasil que está completamente desconsiderada, inclusive pela historiografia, pela arqueologia, pelos campos disciplinares mais afeitos à questão”, pontua o professor Samuel Vida, coordenador do Programa de Direito e Relações Raciais da UFBA. “A descoberta do Campo da Pólvora tem a ver com um olhar epistêmico, de reconhecimento de que esse apagamento não é casual, nem é uma fatalidade, é uma construção. Estamos falando, possivelmente, do maior cemitério de pessoas escravizadas disponível, diferentemente de outros locais já conhecidos, mas que passaram por um processo de edificação.”
São Paulo. A Capela dos Aflitos, no bairro da Liberdade, é o que resta da memória – Imagem: Rodrigo Costa/Alesp
Tal apagamento, ressalta, é intrínseco ao racismo brasileiro, que desconsidera o legado e a importância dos registros sobre as populações negra, indígena e outros grupos. “É preciso uma reparação patrimonial, simbólica e espiritual que envolva direitos coletivos à memória e à história desses povos que foram ali indignamente sepultados”, diz. “A reparação vai trazer esses indivíduos à construção da narrativa histórica, principalmente na cidade de Salvador, para que a gente possa discutir um pouco mais sobre o sequestro das comunidades da África. E por que não, em algum momento, até unir as famílias?” Fragmentos ósseos encontrados na escavação, conta, foram enviados para análise laboratorial. “Agora a gente quer conversar com a sociedade, a partir de audiências públicas, para que possamos avançar na pesquisa e entender um pouco mais sobre sexo, idade, sempre considerando a questão ética que o caso exige.”
Em março, foi criado o Comitê Nacional de Salvaguarda de Cemitérios de Pessoas Africanas, Indígenas e seus Descendentes Escravizadas no Brasil. O grupo reúne, até o momento, pesquisadores da Bahia, São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro, estados onde há confirmação de cemitérios de escravos e indígenas. Segundo Lucas Almeida, coordenador do Museu dos Aflitos e diretor da União dos Amigos da Capela dos Aflitos, em São Paulo, a ideia do colegiado é cobrar políticas públicas de memória e reparação às comunidades tradicionais. “Não importa se o cemitério tem 10 mil ou 3 mil corpos. São vítimas de violações e precisam ser preservados de tal modo a garantir que o Brasil saiba minimamente o local onde estão esses mortos e desaparecidos.”
Um comitê nacional foi criado para recuperar a história dos cemitérios de escravos, indígenas e marginalizados
No Rio de Janeiro, a região conhecida como Pequena África, na zona portuária da cidade, sedia os cemitérios dos Pretos Novos e o de Santa Rita. Em Minas Gerais encontra-se o de Santa Luzia, também conhecido como Cemitério dos Homens Pretos. Em Belém, há indícios de que a casa de espetáculos mais tradicional da cidade, o Teatro da Paz, tenha sido erguido sobre um cemitério indígena. O caso mais emblemático fica, no entanto, no bairro paulistano da Liberdade, hoje associado aos imigrantes orientais. A região foi erguida sobre um local de sepultamento de indígenas e escravos africanos que esteve ativo entre 1775 e 1858. “O Cemitério dos Aflitos precisa ser lembrado como um local de crime de lesa-humanidade, pela violência sofrida por comunidades indígenas e africanas, que nunca souberam aonde foram parar seus parentes”, afirma Almeida. O único resquício que resiste ao tempo é a Capela dos Aflitos e uma pequena parte do terreno ao lado do templo, reconhecido como sítio arqueológico. “Quando a gente fala desses cemitérios, está falando do direito à honra, à imagem, à ancestralidade, reconhecido pelo STF.” Segundo Almeida, no fim do século XIX, a região, que, assim como Salvador, pertencia à Santa Casa de Misericórdia, foi loteada e vendida para construções residenciais e comerciais. “Nesse loteamento, os corpos não foram transferidos para a Consolação, o primeiro cemitério público da cidade.”
Em Salvador, o Campo da Pólvora funcionou até 1884, quando foi desativado devido a uma obra próxima ao local que passou a jogar entulho sobre o terreno. “A Santa Casa passou a sepultar esses grupos marginalizados no novo cemitério que ela inaugurou, o Campo Santo, que passou a ser apontado como se este fosse o primeiro cemitério público da cidade, apagando a existência do Campo da Pólvora”, destaca Olivieri. Há registros de que estão entre os remanescentes os restos mortais dos líderes das Revoltas dos Búzios (1798) e dos Malês (1835), movimentos abolicionistas baianos, e da Revolução Pernambucana, de 1817, levante contra a Coroa portuguesa. “A descoberta do Campo da Pólvora representa um marco na história de Salvador e do Brasil, pois revela mais uma faceta do capítulo sombrio acerca do período da escravidão e seus impactos na formação social e cultural do País. Isso é de fundamental importância para trazer à tona uma história apagada deliberadamente dos registros oficiais, reinserindo-a no lugar de direito e resgatando, com isso, a memória e a identidade de uma população marginalizada e invisibilizada”, analisa Alexandre Colpas, arqueólogo da Superintendência do Iphan na Bahia. “A descoberta vai fortalecer a identidade e o orgulho das comunidades afrodescendentes, que poderão conectar-se com seus antepassados e suas histórias.” •
Publicado na edição n° 1366 de CartaCapital, em 18 de junho de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Passado soterrado’
Por:Carta Capital