Deixa os moleque viver, deixa os moleque sonhar (…)/ O que faz eles tremer é o brilho do meu olhar, são versos do refrão de Desabafo 2, música lançada pelo funkeiro MC Poze do Rodo em 4 de junho, um dia após ser solto, por meio de um habeas corpus, depois de ter sido preso em 29 de maio. A forma como o cantor foi conduzido pela Polícia Civil do Rio de Janeiro, sem camisa e descalço, algemado com os braços para trás, foi alvo de críticas, uma vez que ele não apresentou resistência à abordagem. Para especialistas, foi um espetáculo midiático, parte de um longo processo de criminalização da cultura periférica.
A repressão policial aos bailes funk é prática antiga. Uma pesquisa conduzida pelo Centro de Antropologia e Arqueologia Forense da Unifesp aponta que 16 jovens foram mortos na região metropolitana de São Paulo e seis perderam a visão durante operações policiais nas festas entre 2012 e 2024. A repressão tem ganhado, porém, novos contornos. Só em 2025, foram protocoladas 63 propostas legislativas contra o funk, segundo a Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial. A maioria associa o gênero ao crime e ao uso de drogas. A vereadora paulistana Amanda Vettorazzo, do União Brasil, e líder do MBL, é autora da Lei Anti-Oruam, cujo objetivo é proibir “a contratação de shows, artistas e eventos abertos ao público infanto-juvenil que envolvam, no decorrer da apresentação, expressão de apologia do crime organizado ou do uso de drogas”.
A lei foi copiada por vereadores do PL e do União em outras cidades e está em tramitação em mais 11 capitais. Em Vitória, no Espírito Santo, foi aprovada e aguarda a sanção do prefeito. O projeto também foi apresentado na Assembleia Legislativa de São Paulo pelo deputado Guto Zacarias, e na Câmara dos Deputados por Kim Kataguiri, ambos do MBL. De acordo com Vettorazzo, a escolha do nome da lei deu-se porque o artista em questão, o trapper Oruam, faz “constante apologia do crime organizado em seus shows”. Ela atribui ao artista a responsabilidade de “transformar o Comando Vermelho em trend no TikTok”.
Projetos de lei para proibir os bailes nas periferias proliferam pelo País
Oruam é o nome artístico de Mauro Davi dos Santos Nepomuceno, filho de Marcinho VP, um dos líderes da facção criminosa nascida nos presídios do Rio de Janeiro. Com mais de 11 milhões de execuções mensais no Spotify, o artista é um dos maiores expoentes nacionais do trap, subgênero do rap. Em resposta à vereadora, o rapper lançou a música Lei Anti O.R.U.A.M., reproduzida mais de 48 milhões de vezes na plataforma de áudio, e mais de 59 milhões de vezes no YouTube. Para o professor Douglas Belchior, da Uneafro, a criminalização do funk e do trap é “a continuidade de uma perseguição racista histórica”, que ao longo dos anos teve como alvo outras manifestações culturais, como o samba e a capoeira, e até hoje afeta as religiões de matriz africana. “Do ponto de vista objetivo, é a criminalização da cultura negra.”
O doutor em Direito, pela Universidade de São Paulo, Danilo Cymrot observa uma tendência entre políticos da extrema-direita de elaborar políticas populistas apenas para obter visibilidade. Autor do livro O Funk na Batida: Baile, Rua e Parlamento, Cymrot classifica de inconstitucional a Lei Anti-Oruam, por estabelecer a censura prévia. “Quem vai decidir se determinada obra faz apologia? O secretário de Cultura? O prefeito? Ou basta a denúncia de qualquer cidadão?” Raramente, lembra o pesquisador, artistas do funk ou do trap são contratados para shows públicos, “diferentemente de cantores de outros gêneros, como o sertanejo, que muitas vezes fazem apologia do uso abusivo de bebidas alcoólicas, ilícitas para menores”.
O deputado federal Pastor Henrique Vieira apresentou na Câmara o Programa de Prevenção à Censura à Arte e Cultura. Contraponto à Lei Anti-Oruam, a proposta impede que artistas periféricos, especialmente do funk, do trap e do rap, sejam barrados em editais públicos e contratações por parte do Estado. “O projeto visa fortalecer a cultura preta e periférica para que ela seja contemplada em editais de fomento à cultura”, afirma o parlamentar. Segundo Vieira, “a cultura da favela salva a juventude, abre perspectiva de renda e de crítica social”.
Simbólico. Oruam, filho de Marcinho VP, serve de apelido a várias leis em debate – Imagem: Redes Sociais
MC Poze do Rodo é um caso de alguém que foi “salvo pela música”, de acordo com ele mesmo. Nascido na Favela do Rodo, na Zona Oeste do Rio de Janeiro, Marlon Brendon Coelho Couto da Silva admite ter sido um soldado do tráfico, como milhares de adolescentes favelados do País, antes de virar músico. A perspectiva de se tornar artista profissional o tirou da “vida errada”. Hoje, ele tem uma agenda lotada e faz, em média, cinco shows por semana, além de turnês internacionais. Há anos deixou para trás o “funk proibidão”, e produz canções de crítica social que retratam a realidade das favelas e o chamado “funk ostentação”. No Spotify, tem mais de 6 milhões de ouvintes por mês.
Nas redes sociais, o MC exibe uma vida dedicada aos cinco filhos e momentos ao lado da esposa, Viviane Noronha, influenciadora digital e dona de uma marca de produtos de beleza, alvo de investigação por supostamente lavar dinheiro para o crime organizado. Também gosta de ostentar os inúmeros cordões de ouro, carros de luxo e cavalos de raça. As joias, tema recorrente de suas músicas, foram apreendidas na operação do dia 29 e devolvidas na segunda-feira 9. “Agora faltam os celulares, os tablets das crianças e o meu computador, onde eu jogo meu CS”, reclamou o artista em vídeo nos stories do Instagram. Na plataforma, o músico fala com seus fãs sobre o hábito de “conversar com o Papai do Céu” e ler a Bíblia. Diferentemente de outros funkeiros, não faz postagens relacionadas a armas ou drogas. Seguidores do MC atribuem a mudança de postura ao nascimento da primeira filha, em 2019.
O comportamento não coincide com o conceito de “narcocultura” utilizado pelo delegado Felipe Curi, comandante da ação que levou à prisão do MC, acusado de apologia do tráfico de drogas e associação a organização criminosa. A advogada Beatriz Lourenço, diretora de Estratégia e Áreas do Instituto Peregum, avalia a operação como um ato de “espetacularização e demonstração de poder”. A imagem do jovem negro algemado no condomínio de alto padrão onde mora, no Recreio, é “um recado para pretos e favelados”. A forma como o artista foi conduzido “não dialoga com a legislação e a jurisprudência brasileira porque o uso de algemas é excepcional”. É um episódio “muito evidente de seletividade penal e racismo policial”.
“Racismo”, resume a antropóloga Desirée Azevedo
Após ser liberado, Poze do Rodo promoveu um festival no Complexo do Alemão, para agradecer o apoio dos fãs. No momento da libertação, milhares esperavam o cantor na saída do presídio Bangu 3 e muitos seguravam cartazes com a frase “MC não é bandido”. “Essa prisão foi um tiro no pé. O Poze saiu muito maior do que ele era. Respondeu à violência do Estado com arte, era isso que esperávamos dele”, afirma o sociólogo Thiago Torres, conhecido na internet como Chavoso da UPS.
Torres, frequentador dos bailes funk de rua, diz que a manifestação cultural é uma das poucas atividades oferecidas aos jovens periféricos. “Se você não tiver um real no bolso, vai conseguir dar um rolê porque o baile não tem catraca, é só chegar”. Para ir aos bailes de Paraisópolis, na Zona Sul da capital paulista, ele diz desembarcar na estação Morumbi do Metrô e seguir de ônibus pela Avenida Giovanni Gronchi. “No caminho, passo por diversas igrejas com música muito alta, por festas de forró que ocupam a rua, rodas de samba com som alto. Por que só o baile é reprimido pela polícia? Porque é a expressão da juventude e foi naturalizado que o jovem negro é um alvo.”
Segundo a antropóloga Desirée Azevedo, a perseguição pode ser resumida em uma palavra: “racismo”. Autora da pesquisa da Unifesp sobre a repressão aos bailes, Desirée debruçou-se sobre reportagens de jornais publicadas ao longo de duas décadas e observa como o processo foi construído gradualmente, entre a polícia e o Parlamento, até chegar no ápice, em 2019, quando o então governador de São Paulo, João Doria, do PSDB, passou a atribuir a organização das festas ao PCC. “Isso é o maior absurdo que ouvi na vida.” “O tráfico de drogas está no baile, mas também na porta das escolas”, denuncia. No mesmo ano, em dezembro, uma operação policial durante um baile em Paraisópolis resultou na morte de nove jovens. Até hoje os responsáveis pelas mortes não responderam por seus atos. •
Publicado na edição n° 1366 de CartaCapital, em 18 de junho de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Os novos “vadios”’
Por:Carta Capital