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quinta-feira, 17 abril, 2025
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Óbvio ululante

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Uma consulta pública da Agência Nacional de Vigilância Sanitária pretende regular o comércio de produtos medicinais derivados da cannabis em farmácias de manipulação. Quando aprovada, a norma vai ampliar as opções de pontos de venda e, em tese, aumentar a concorrência. Atualmente, 38 tipos de medicamentos são vendidos em drogarias no País. Um avanço a se comemorar, certo? Nem tanto, segundo as associações canábicas, que permanecem excluídas, dependem de autorização judicial para cultivar a planta e com frequência enfrentam a repressão policial. Em março, uma entidade do Rio Grande do Sul teve a plantação destruída pela PM. Mais de 900 pacientes ficaram desassistidos. “Estamos num limbo jurídico. Pedimos ao governo para estabelecer regras, porque precisamos de segurança para atender milhares de pacientes”, declara Margarete Brito, diretora da Apepi, a mais antiga e uma das maiores associações do País, localizada no Rio de Janeiro.

A campanha “Repense o Óbvio”, iniciativa de um coletivo de 70 associações que atendem mais de 86 mil pacientes, é uma tentativa de lançar luzes sobre o tema. O documento, disponível para assinaturas até 7 de maio, será encaminhado aos ministérios da Justiça, Saúde e Agricultura e Pecuária. Os associados clamam por regras claras acerca da atuação das associações e tentam conscientizar a sociedade contra o estigma em torno da maconha, seja para uso medicinal ou recrea­tivo. Atualmente, mais de 456 mil brasileiros utilizam os produtos de ­cannabis em tratamentos. Para fabricar o próprio remédio é necessário obter habeas ­corpus e, para importar medicamento ou insumo, precisa de liberação da Anvisa. Esses entraves tornam o processo caro, embora as associações tenham se constituído em uma alternativa acessível. São inúmeras as barreiras. “Acontece de enviarmos o remédio pelos Correios e a polícia interceptar o pacote no meio do caminho. O paciente acaba sem o remédio”, conta a advogada e diretora da Apepi. Isso acontece porque, na prática, não existe uma regra para estabelecer se é permitido ou não enviar os produtos pelos Correios ou transportadoras particulares. “É um campo muito nebuloso, e mesmo sem regulação muitas vezes somos punidos.”

A diretora da associação Maria Flor, de Marília, interior de São Paulo, passou por uma situação traumática. Fernanda Redondo Peixoto e o marido, Márcio Roberto Pereira, viajavam em direção a Rondônia e levavam seis frascos de óleo de cannabis para um idoso. No meio do caminho, foram parados pela polícia e responderam na Justiça por tráfico de drogas. Ambos foram presos, ele em regime fechado, ela em prisão domiciliar. “A polícia pesou os frascos, incluiu o peso do vidro e acabamos respondendo por porte de mais de 700 gramas de maconha”, lamenta. A luta pela regulamentação do uso medicinal, acredita Peixoto, precisa incluir as vítimas da guerra às drogas. “Seja quem faz uso recreativo, seja o paciente que precisa da substância para um tratamento, estamos falando da mesma planta. Mas o Estado persegue, e sabemos que a criminalização tem cor e endereço.”

Na tentativa de escapar da repressão, associações investem em pesquisa e inovação. A Apepi firmou parceria com instituições públicas e universidades, entre elas Fiocruz, UFRJ, Unicamp, UFBA e Instituto de Tecnologia da Aeronáutica. Mais de 11 mil pacientes são atendidos todos os meses com os remédios de fabricação própria. Ainda assim, a iniciativa esbarra na Lei de Drogas. “As associações não são indústrias. São coletivos de pacientes e familiares que se uniram para conseguir produzir o remédio, por isso precisamos de uma regulação própria”, argumenta Brito. De acordo com a especialista, os medicamentos oferecidos nas farmácias, além de muito caros, nem sempre atendem às necessidades do usuá­rio, devido à dosagem baixa das substâncias THC ou CBD. Na farmácia, um frasco de óleo de cannabis pode custar de 500 a mais de mil reais, mas na Apepi o remédio sai por 180 reais. Em outras associações, o preço pode ser ainda mais baixo.

As associações de pacientes vivem em um limbo jurídico e sob o tacão da polícia

O advogado Emílio Figueiredo, da Rede Jurídica pela Reforma da Política de Drogas e do Conselho Nacional de Política de Drogas, explica que as associações exercem um protagonismo no Brasil não conhecido em outros países. “Nem na Califórnia, nos EUA, onde essa cultura das associações é muito forte, funciona como aqui.” Os coletivos desenvolvem um trabalho de acolhimento humanizado, prestam assessoria jurídica e produzem remédios de qualidade a preços acessíveis. “Trata-se de uma inovação brasileira de cuidado com a saúde que quebra a lógica da indústria farmacêutica.” A demora para regular, acredita, é atravessada por esse embate. “Existe um lobby imenso da indústria farmacêutica para os medicamentos serem tratados sem contemplar as associações.”

O advogado Felipe Nechar, consultor jurídico da Associação Divina Flor, de Campo Grande, Mato Grosso do Sul, concorda com a avaliação. “Apesar de avanços jurídicos obtidos nos últimos anos, a regulamentação do modelo associativo ainda é tratada como um delírio distante, enquanto a indústria farmacêutica aguarda confortavelmente a regulamentação do cânhamo.” Em novembro, o STJ autorizou o cultivo e comercialização desse derivado para fins medicinais. Trata-se de uma variação da Cannabis ­sativa com teor de THC inferior a 0,3%. Esse grau de THC não atende a maior parte das doenças e dos distúrbios tratados, ou exige uma quantidade muito maior de óleo para atingir o efeito necessário.

A campanha Repense o Óbvio, diz ­Nechar, é “o grito dos desamparados: mães de vítimas da violência policial, agricultores presos por cultivar uma planta medicinal que ainda é criminalizada”. A saída para o fim dessa criminalização é a reinterpretação da Lei de Drogas, acredita. “A regulamentação da ­cannabis, nesse sentido, não é apenas sobre uma planta, mas sobre romper com a tinta fria das leis que inscrevem direitos no papel sem apagar as cicatrizes da história.”

O psiquiatra Flávio Falcone, integrante do Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes da Universidade Federal de São Paulo, o Proad–Unifesp, avalia que a demora na regulamentação das associações se deve à falta de vontade política. “O governador Tarcísio de Freitas, de extrema-direita, sancionou a lei em São Paulo para distribuir medicamentos de cannabis para epilepsias raras pelo SUS. Por que o presidente Lula não avança?” Segundo ele, o argumento de que “o Congresso é conservador” não passa de desculpa, uma vez que a regulação pode ser feita via Ministério da Saúde. •

Publicado na edição n° 1358 de CartaCapital, em 23 de abril de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Óbvio ululante’





Por:Carta Capital

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