O helicóptero Black Hawk é uma das armas de guerra mais conhecidas do planeta, graças à sua presença constante nas últimas décadas em telejornais ou em clássicos do cinema, como Falcão Negro em Perigo, de Ridley Scott. Até o fim do ano, um exemplar da assustadora aeronave, símbolo da supremacia militar dos EUA, fará parte do arsenal da Polícia Militar do Rio de Janeiro. Capaz de realizar operações de deslocamento, inserção ou resgate de até 11 soldados, além de ser adaptável a armamentos como metralhadoras externas e lançadores de foguetes, o Black Hawk, segundo o governo estadual, fará companhia aos outros modelos já utilizados pela polícia fluminense, como, por exemplo, o italiano Bell Huey II ou o Helibras H-125, de fabricação nacional.
A divulgação da aquisição do Black Hawk, onipresente nas operações militares norte-americanas em países como Iraque, Afeganistão e Somália, ocorre 40 dias após o Supremo Tribunal Federal ter concluído, em inédita declaração conjunta, o julgamento da “ADPF das Favelas”, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental que busca estabelecer regras definitivas para a realização de incursões policiais nas comunidades do Rio. A decisão do STF colocou ponto final em uma discussão que se arrastava desde 2019, mas ainda não foi oficialmente publicada.
Enquanto isso, crescem as especulações sobre a implementação de avanços como a obrigatoriedade da realização de necrópsias em casos de morte decorrente de intervenção policial, o uso de câmeras nas fardas e viaturas e o acompanhamento da saúde mental de policiais envolvidos em episódios de violência. E cresce também a preocupação com alguns recuos em relação ao texto original da ADPF apresentado pelo ministro Edson Fachin, como, por exemplo, a renovada permissão para o uso de helicópteros nas operações, a possibilidade de utilização de escolas e postos de saúde nas comunidades como bases para operações policiais e não obrigatoriedade de comprovar o caráter excepcional da incursão antes de realizá-la.
Até o fim do ano, a PM incorporará ao seu arsenal um Black Hawk, usado em ações militares dos EUA no Iraque e no Afeganistão
O principal ponto do pacote, e também o mais polêmico, é a proposta de elaboração de um plano pelo governo estadual para recuperar áreas dominadas pelo crime organizado. O objetivo, segundo o STF, é entrar nas favelas com força repressiva para conter o controle territorial do tráfico de drogas, mas também oferecer ações sociais estruturantes promovidas pelo Estado. Embora bem-intencionada, a proposta guarda uma mórbida semelhança com o programa de Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) criado no governo de Sérgio Cabral e hoje símbolo maior do fracasso histórico das políticas de segurança pública no Rio de Janeiro.
“As UPPs e todas as outras tentativas realizadas não geraram os resultados esperados. Isso não significa que não se possa fazer uma retomada de territórios de maneira efetiva, mas exigirá muito planejamento e elaboração de diagnósticos, dimensões para as quais o governo estadual não tem nos últimos anos oferecido muita esperança de avanço”, afirma o pesquisador Daniel Hirata, integrante do Grupo de Estudos de Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense. O especialista diz “ver com receio” a proposta aprovada pelo Supremo: “Retomar o controle territorial significa também ter a presença efetiva de uma mediação política e pública de resolução de conflitos e tornar possível a existência de mercados livres do controle do crime nas favelas cariocas”.
Mesmo antes da publicação oficial da decisão do Supremo, o governo estadual já discute os critérios e parâmetros que serão adotados no plano de recuperação de territórios. Segundo o secretário de Segurança Pública, Victor Cesar dos Santos, até o fim de maio já estará alinhavado um plano estratégico de ação junto ao comando da PM e o Ministério Público do Rio de Janeiro. Santos adianta que “não há capacidade técnica” para ocupar todas as 800 favelas do estado. “Não podemos temer o desafio e devemos começar pelos grandes complexos de favelas. Dando certo nas comunidades de maior complexidade, é natural que também dê certo nas outras.”
Espelho. A semelhança com as UPPs de Sérgio Cabral não é mera coincidência – Imagem: Tânia Rêgo/Agência Brasil e Mauro Pimentel/AF
O secretário diz que, se não for possível estender o plano aos principais complexos, o governo pode escolher um deles como vitrine. A ideia remete à cinematográfica ocupação do Complexo do Alemão por carros blindados da Marinha em 2010, mas com uma diferença: “O poder de fogo do crime organizado, hoje no Rio, é dez vezes maior que o daquela época”, estima Mário Sérgio Duarte, ex-comandante da PM que esteve à frente das operações há 15 anos. Talvez como ensaio, soldados do Batalhão de Operações Especiais (Bope) da PM entraram no Complexo da Maré na madrugada da terça-feira 13, em uma operação que contou com o apoio do blindado “Caveirão” e que resultou na morte de Thiago da Silva Folly, o TH, líder do tráfico de drogas em nove favelas da região e apontado pela polícia como o número 2 da facção Terceiro Comando Puro, o TCP.
“A ação foi cirúrgica e teve um resultado preciso. Digo com alegria que não há notícias de qualquer morador ou policial ferido”, comemora o secretário estadual de Polícia Militar, coronel Marcelo Menezes. A “boa notícia”, entretanto, é chamuscada pelos efeitos colaterais da operação, que fechou as três principais vias expressas do Rio – Avenida Brasil e as linhas Vermelha e Amarela – e levou o habitual pânico a motoristas e passageiros que, em determinados momentos, foram orientados pela polícia a deixar seus veículos e procurar abrigo. Além disso, segundo informação do próprio governo, 45 escolas tiveram de suspender as aulas e quatro unidades de saúde interromperam seus atendimentos. Segundo o sindicato patronal Rio Ônibus, 70 linhas tiveram circulação interrompida ao longo do dia. O campus Fundão da UFRJ, que fica ao lado do Complexo da Maré, também suspendeu suas atividades.
Por essas e outras, a determinação do STF de que a retomada territorial deve ser acompanhada por “ações sociais estruturantes” por parte do governo estadual é vista com cautela pelos especialistas. “Entrar com serviços é fundamental, mas só trará benefícios em longo prazo”, observa o sociólogo Ignacio Cano, do Laboratório de Análise da Violência da Uerj. Ele lembra que a falta de paciência e de estrutura adequada para essa maturação na relação entre o Poder Público e os moradores das favelas marcou “a tentativa incialmente bem-sucedida, mas depois fracassada, da política de UPPs”.
O governo pretende retomar as operações policiais nos maiores complexos de favelas, a exemplo da Maré
Outra diferença em relação à época de implantação das UPPs é a diversificação das atividades dos grupos criminosos dentro das comunidades, onde, além da venda de drogas, os bandidos lucram com a exploração de serviços como apostas esportivas, luz, gás e internet, entre outros. “O controle territorial por parte de facções hoje é representado por um domínio econômico, não só bélico”, diz Renato Sérgio de Lima, coordenador do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Nesse sentido, outra determinação do Supremo, a colaboração da Polícia Federal e do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) com as autoridades fluminenses em casos de repercussão interestadual ou internacional, é vista como positiva. Para o coordenador do FBSP, a condição para um efetivo enfrentamento ao crime organizado no Rio passa pelo envolvimento da PF, “seja pelo caráter transfronteiriço das facções, seja pelo grau de contaminação e corrupção que a gente percebe hoje nas instituições”. Lima avalia que o trabalho conjunto de PF e Coaf pode tornar-se a medida de maior impacto em médio prazo porque “vários problemas acontecem por questões de padrão operacional que valorizam o uso da força, mas também porque uma parcela das instituições está completamente comprometida com a corrupção e com a ideia da manutenção do estado atual”.
Para Daniel Hirata, fazer com que PF e Coaf designem equipes específicas para enfrentar o crime organizado no Rio é uma excelente ideia. “A atuação da Polícia Federal vem mostrando resultados importantes. Não da maneira tradicional como a polícia faz no Rio, atuando sobre a ponta pobre e precária, mas sim na investigação das grandes mediações que se estabelecem entre o crime e a política, entre o crime e os negócios legalizados. Nesse último ponto, o Coaf é fundamental para que possamos ter informações pormenorizadas da movimentação financeira legal e ilegal associada à criminalidade organizada.”
Santos. “Não haverá local no Rio onde as forças policiais não entrarão” – Imagem: Fernando Frazão/Agência Brasil
Uma das inquietações de Ignacio Cano é justamente a retomada dos disparos feitos desde helicópteros, medida que aterroriza os habitantes das favelas, tem eficácia duvidosa no combate ao narcotráfico e promete fortes emoções com a utilização do Black Hawk. “Outra preocupação é a polícia não precisar mais avisar previamente ao Ministério Público para fazer a operação de incursão, já que o controle passa a ser posterior à ação. Por fim, assombra a permissão para fazer operações perto de escolas e hospitais.”
A revogação, pelo STF, da necessidade de comprovar previamente o “caráter excepcional” da operação, exigência inicial da ADPF analisada por Edson Fachin, é bem-vinda para o governo estadual. “Mudamos o entendimento sobre os critérios de excepcionalidade. Se o cidadão não tem o direito de ir e vir, para nós isso já é uma excepcionalidade. Ou seja, o Rio inteiro é uma excepcionalidade”, diz o secretário de Segurança Pública. Para “tranquilizar” a população, Victor Cesar dos Santos garante uma polícia presente. “Não haverá local no Rio onde as forças policiais não entrarão”, garante. •
Publicado na edição n° 1362 de CartaCapital, em 21 de maio de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Mórbido reforço’
Por:Carta Capital