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sábado, 19 abril, 2025
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Memória eclipsada

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No aniversário de 61 anos do golpe militar, a antiga sede da Delegacia de Ordem Política e Social de Belo Horizonte foi ocupada por manifestantes em uma ação que reivindica a construção, no local, de um memorial contra a ditadura. Situado na Avenida Afonso Pena, principal eixo do projeto que norteou a construção da cidade, o prédio foi um antro de violações dos direitos humanos desde a sua inauguração, em 1958, mas atingiu novos patamares de terror durante a ditadura. Desde 1999 existem propostas para transformar o espaço em um centro de memória. Em 2018, o então governador Fernando Pimentel, do PT, lançou um projeto para contemplar a reivindicação dos ativistas. Ao tomar posse no ano seguinte, Romeu Zema, do Novo, manteve, no entanto, a ideia na gaveta.

Renato Campos Amaral é militante do Partido Comunista Revolucionário, uma das entidades que coordenaram a ocupação. As organizações de defesa dos direitos humanos, diz Amaral, começaram a perceber que havia a intenção do atual governo de descaracterizar o espaço. “As declarações e ações do governo apontavam para a criação de um centro cultural genérico. E isso é um problema, porque entendemos que o que deve ser rememorado são os crimes cometidos durante a ditadura e a resistência de quem a enfrentou.”

Os manifestantes organizaram visitas guiadas pelo prédio e mostraram os locais onde os presos políticos eram encarcerados e torturados, além de sessões de documentários sobre a ditadura e eventos culturais. A iniciativa incomodou o governo estadual. “No dia 2 de abril, a polícia foi lá e, com três viaturas, cercou a ocupação, não deixando que nenhuma visita ou atividade fosse feita”, denuncia o ativista.

A ocupação reforçou a mobilização de ex-presos políticos e ativistas dos direitos humanos. Gildásio Cosenza, hoje com 77 anos, era vinculado ao grupo Ação Popular. Ele foi detido no congresso da União Nacional dos Estudantes, em Ibiúna, em outubro de 1968, no interior de São Paulo, e permaneceu preso com outros 27 estudantes no batalhão-escola da Polícia Militar de BH. “No dia 13 de dezembro, o comandante da época mandou instalar uma televisão na cela onde estávamos. Na hora, quase morremos de susto, mas logo depois descobrimos que era para assistirmos à instalação do AI-5. Ele entrou lá e disse que nós estávamos fodidos, que acabou essa babaquice de habeas corpus e que ‘agora quem manda somos nós e vocês vão mofar aqui dentro’. Logo depois fomos transferidos para o Dops”, conta. No mesmo prédio, lembra Cosenza, ficavam detidos tanto homens quanto mulheres. “Éramos espancados com cassetetes de madeira e de borracha. Espancamento com chicote e o que eles chamavam de latinha. Éramos obrigados a ficar de pé em uma lata aberta, que em pouco tempo começava a cortar a sola dos pés. E praticamente todas as mulheres eram estupradas.”

A repressão não recaía apenas no lombo dos integrantes de movimentos estudantis e sociais. Paulo Geraldo Ferreira era praça da Polícia Militar em Belo Horizonte nos anos 70. “Eu não pedi pra fazer a resistência, eu fiz a resistência porque fui provocado. Quando entrei na Polícia Militar, no meu batalhão tinha 400 recrutas, 360 deles eram negros. Estávamos submetidos a 25 oficiais, todos eles de olhos claros.” Em 1975, Ferreira e outros colegas de farda participavam do clube “Máscaras Negras”, baile que marcou o nascimento da cultura black em Belo Horizonte. O espaço era alvo constante do batalhão de Rádio Patrulha, que detinha os frequentadores e os encaminhava para o Dops. “Lá era feita uma triagem para ver quem ia descer para os porões. Aí eles perguntavam, estrategicamente, se alguém era polícia. Perguntavam baixinho pra ninguém ouvir. E era aí que aparecia a nossa identidade de PM. Começava a tortura no Dops e terminava nos batalhões da PM.”

A proposta é criar um memorial dos crimes da ditadura. O governo Zema pensa em outra coisa

Apesar da sua importância, a sede do antigo Dops era apenas um dos muitos espaços de tortura da capital mineira. Assim como ocorreu com Cosenza e Geraldo, outros presos eram continuamente transferidos de um local para outro. A historiadora Regina Helena Alves da Silva explica que essa dinâmica mostra como a tortura estava integrada e organizada, passando por vários aparelhos, tanto em nível estadual quanto federal. A arquitetura do prédio, prossegue a historiadora, foi concebida para a repressão, mas durante a ditadura houve alterações para potencializar essa vocação. “O uso do prédio era totalmente voltado para o terror. Em todos os andares do edifício, em cada espaço possível, eles criavam uma forma diferente de tortura.”

Segundo Cosenza, em meados dos anos 70 o prédio passou a abrigar parte da estrutura do Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI–Codi), vinculado ao Exército. “Eles fizeram obras lá. Hoje, se você entrar no Dops, vai ver que tem uma escada que dá para uma parede. Essa escada saía da carceragem e levava direto para uma sala de tortura.” O tratamento acústico evitava que os gritos dos detidos incomodassem a vizinhança e uma piscina foi construída para as sevícias que envolvessem afogamentos. Além disso, a fiação de algumas salas foi alterada para facilitar os choques elétricos. O que antes era um pequeno armário embaixo de uma escada tornou-se um instrumento de tortura, onde o preso ficava contorcido durante dias em um espaço exíguo.

Zema é um dos tantos bolsonaristas que pregam a clemência para quem tentou impedir a posse do presidente Lula e instalar um novo regime autoritário no País. Em 2 de abril, o governador postou nas redes sociais um vídeo gerado por Inteligência Artificial em defesa da anistia dos condenados pela invasão das sedes dos Três Poderes, em 8 de janeiro de 2023. Em determinado trecho, a música do vídeo pergunta qual nação deve ser construída, “se é um país onde o bandido é solto e o rival vai preso com medo do voto”. Enquanto tenta reforçar o discurso de que os golpistas são vítimas de um poder ditatorial, durante mais de seis anos o governador, que sonha em concorrer à Presidência da República, deixou enterrada a memória das vítimas da repressão da ditadura.

O protesto dos ativistas parece, no entanto, ter surtido algum efeito.

Em audiência na Assembleia Legislativa, representantes da Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social assumiram o compromisso de tirar do papel o projeto do memorial. A ver. •

Publicado na edição n° 1358 de CartaCapital, em 23 de abril de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Memória eclipsada’





Por:Carta Capital

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