O Dia das Mães é uma data especialmente dolorosa para milhares de mulheres que perderam filhos assassinados por forças policiais. A celebração, para elas, intensifica o luto e, com frequência, agrava quadros depressivos. Com o objetivo de ao menos amenizar esse sofrimento, pesquisadores e ativistas de direitos humanos lançaram, na quarta-feira 7, o projeto piloto EnfrentAção, voltado ao acolhimento humanizado de familiares de vítimas da violência do Estado. A iniciativa é resultado de uma parceria entre o movimento Mães de Maio e o Centro de Antropologia e Arqueologia Forense da Universidade Federal de São Paulo (Caaf/Unifesp).
O movimento foi criado por mães de vítimas do violento revide da polícia paulista aos ataques do PCC em 2006. Até hoje, o número de mortos nos chamados Crimes de Maio é incerto. A Secretaria de Segurança Pública de São Paulo reconhece oficialmente 564 homicídios, ocorridos em um intervalo de apenas duas semanas. “Este mês é sempre muito difícil para nós. Muitas voltam a adoecer, e, este ano, perdemos duas lutadoras em dois dias”, lamenta Débora da Silva, fundadora do Mães de Maio.
No dia 28 de abril, faleceu Cecília Lopes, que desde 2019 lutava por Justiça pela morte do filho, Lucas Lopes, assassinado pela Polícia Militar em Sorocaba, no interior de São Paulo. No dia seguinte, Evanira Aparecida da Silva também morreu sem ter obtido respostas sobre as circunstâncias do assassinato do filho, Eduardo Silva, uma das vítimas do Massacre de Paraisópolis, ocorrido na segunda maior favela da capital em 2019.
Ao longo dos anos, o Mães de Maio tornou-se referência na luta por justiça, verdade, memória e reparação. As integrantes do grupo articularam-se com mulheres de outros estados, também marcadas pela violência estatal. “Infelizmente, não param de chegar mães ao nosso movimento, porque o Estado mata todos os dias, tendo como alvo preferencial a população periférica”, denuncia Silva.
Dados divulgados recentemente pela Anistia Internacional ajudam a dimensionar a tragédia. Em apenas três meses de 2023, as forças policiais mataram 393 “suspeitos” em três estados: Rio de Janeiro, São Paulo e Bahia. No mesmo ano, o Brasil registrou 3,4 milhões de denúncias de violações de direitos humanos, aumento de 41% em relação a 2022. “O recado que o Estado continua transmitindo é que a polícia tem carta branca para matar e cometer outras violações, sobretudo contra comunidades negras e periféricas”, diz Jurema Werneck, diretora-executiva da entidade no Brasil.
O projeto EnfrentAção começou a ser implementado em cinco estados com altas taxas de letalidade policial: Bahia, Ceará, Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo. Os grupos de acolhimento oferecem escuta qualificada e orientação a familiares de vítimas da violência estatal, por meio de uma equipe multidisciplinar formada por psicólogos, advogados e assistentes sociais. “Percebemos que esses profissionais não sabiam lidar com a nossa dor. Ninguém foi preparado para atender uma mãe em luto”, observa Silva.
A partir do processo de escuta, foi desenvolvido um protocolo de treinamento – ou mentoria – para os profissionais envolvidos no projeto. As próprias mães passaram a auxiliá-los no acolhimento de novos familiares, assumindo o papel de “mães de referência”. O EnfrentAção conta com financiamento da Secretaria de Acesso à Justiça, vinculada ao Ministério da Justiça e Segurança Pública. A expectativa é de que o modelo se consolide como uma política pública de alcance nacional, com grupos de apoio constituídos em todos os estados da federação. Nos cinco estados que fazem parte do projeto piloto, cada núcleo deve atender de 30 a 40 famílias.
Reitora da Unifesp e coordenadora científica do projeto, Raiane Assunção explica que a iniciativa é fruto de um extenso trabalho de pesquisa, no qual as mães foram incorporadas como “pesquisadoras sociais”, e não tratadas apenas como objeto de estudo. “Nossos estudos demonstram que há uma violência de Estado reiterada, não só nas mortes cometidas por agentes policiais, mas também no próprio funcionamento do sistema de justiça.”
Polícias de apenas três estados mataram quase 400 “suspeitos” no intervalo de três meses, denuncia a Anistia Internacional
Inicialmente, os pesquisadores do grupo concentraram seus estudos nos Crimes de Maio. Em seguida, desenvolveram uma segunda pesquisa, desta vez com foco no adoecimento das famílias – um trabalho que contou com o apoio da Universidade Harvard. O estudo comprovou que o sofrimento psíquico das mães e de outros familiares de vítimas da violência estatal é recorrente. Muitos desenvolvem quadros de depressão, ideação suicida e diversos outros transtornos de saúde mental, além de doenças relacionadas aos sistemas cardiovascular e nervoso.
Edna Cavalcante, uma das “mães de referência” no Ceará, denuncia o que chama de tentativa do Estado de “manter as mães dopadas”, estimulando o uso abusivo de medicamentos psiquiátricos de tarja preta. “A polícia mata nossos filhos e, depois, querem nos tratar como loucas. É mais uma violação”, afirma. Ela mesma recusou o tratamento oferecido pelo governo após a morte do filho Alef, assassinado pela polícia no episódio que ficou conhecido como a Chacina do Curió, em 2006. Edna relata que, em muitos casos, há imposição de internações compulsórias a pacientes enlutados. “Nossa luta é para que as mães recebam um tratamento digno.”
Dez anos se passaram desde que o jovem David foi assassinado pela polícia de Salvador, aos 16 anos. Até hoje, sua mãe, Rute Fiuza, não obteve respostas, mas, recentemente, conseguiu transferir o caso da Vara Militar para a Justiça comum. “Foi uma primeira vitória”, avalia. “O adoecimento das mães acontece principalmente por causa da impunidade. É desesperador ver nossos filhos assassinados e assistir essa tragédia se repetir todos os dias com outras famílias, sem que nada aconteça com os culpados”, desabafa.
No campo legislativo, as famílias de vítimas da violência estatal também lutam pela aprovação do Projeto de Lei nº 2999/2022, de autoria do deputado Orlando Silva. Batizada de Lei Mães de Maio, a proposta prevê uma série de medidas de reparação e está em tramitação na Câmara. Nívia Raposo, “mãe de referência” no Rio de Janeiro e fundadora do Movimento de Mães e Familiares de Vítimas da Violência Letal do Estado e Desaparecimento Forçado, sonha com uma mudança estrutural no Estado, em que as polícias sejam treinadas para proteger a população e não para agir com uma lógica de guerra. “Quando uma mãe perde um filho, ela perde o equilíbrio. Construir laços de confiança e acolhimento com outras mães nos traz de volta ao centro e nos dá força para lutar por justiça e reparação.” •
Publicado na edição n° 1361 de CartaCapital, em 14 de maio de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Luto permanente’
Por:Carta Capital