Em um intervalo de quatro dias, no feriado da Semana Santa, dez mulheres foram vítimas de feminicídio no Rio Grande do Sul. Seis delas em um único dia, a sexta-feira 18. A reação foi imediata. Movimentos feministas mobilizaram-se para cobrar do governador Eduardo Leite investimentos na proteção feminina. Em Brasília, quatro deputadas da bancada gaúcha – Maria do Rosário e Denise Pessoa, do PT, Fernanda Melchionna, do PSOL, e Daiana dos Santos, do PCdoB – reuniram-se com o ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, para pedir apoio federal. Durante o encontro, foram informadas de que 4 milhões de reais destinados pelo governo por meio do Fundo Nacional de Segurança Pública para ações de combate à violência contra a mulher no Rio Grande do Sul ainda não haviam sido utilizados.
Em nota à imprensa, a Secretaria da Segurança Pública informou que os recursos liberados em duas parcelas, nos meses de outubro e dezembro de 2024, que representam 73% do montante, “foram empenhados”. Pelas redes sociais, Leite manifestou repúdio à violência e destacou uma “série de medidas” adotadas para combater o feminicídio. Os comentários na postagem contradizem, porém, as declarações do tucano. As críticas vão das condições precárias dos banheiros em delegacias ao atendimento oferecido às vítimas, passando pelo descaso com os municípios do interior, a ausência de uma rede estruturada de proteção às mulheres, a falta de efetivo policial e o número insuficiente de delegacias especializadas.
Em resposta aos pedidos de informação da revista, a assessoria de comunicação da Secretaria de Segurança informou que 78,47% dos recursos previstos foram empenhados para a compra de veículos, munições, televisores e aparelhos de ar-condicionado destinados às polícias Civil e Militar. Segundo a pasta, os investimentos buscam ampliar as visitas das Patrulhas Maria da Penha e reforçar diligências de elucidação de ocorrências. A secretaria não comentou o descontentamento da população em relação à ineficiência das ações implementadas pelo governo.
A promotora de Justiça Ivana Battaglin, coordenadora do Centro de Apoio Operacional de Enfrentamento à Violência Contra a Mulher, afirmou que os casos de feminicídio no Brasil, especialmente no Rio Grande do Sul, continuam subnotificados. Segundo ela, levantamento realizado pelo observatório gaúcho Lupa Feminista, que monitora mortes de mulheres com base em notícias publicadas na imprensa, aponta discrepâncias significativas em relação aos dados oficiais. Em 2024, enquanto a Polícia Civil registrou 72 mortes, o Lupa Feminista contabilizou 110. Em 2025, a Polícia Civil registrou 27 óbitos, diante dos 31 apurados pela organização. A principal razão para essa diferença, diz Battaglin, está na forma de classificação dos crimes, uma vez que mortes fora do contexto doméstico muitas vezes são tipificadas como homicídios, tanto pela polícia quanto pelo Judiciário, o que mascara a real dimensão da violência de gênero. A promotora destacou ainda que a violação contra as mulheres não deve ser tratada apenas como uma questão de segurança pública, mas como uma pauta de Direitos Humanos, que exige políticas afirmativas, ações de acolhimento e estruturas de apoio. “Faltam delegacias especializadas, e muitas das que existem estão mal estruturadas, com efetivo insuficiente, o que impede o funcionamento ininterrupto. Além disso, a ausência de casas-abrigo e a falta de creches públicas impactam diretamente na autonomia feminina.”
Apenas no feriado da Semana Santa, foram registradas dez mortes no estados
O programa RS Seguro, do governo estadual, cita Battaglin, contribuiu para a redução geral da criminalidade no estado, mas não conteve os índices de violência contra a mulher. “Esse dado evidencia que ações focadas exclusivamente na segurança pública não são suficientes para enfrentar o feminicídio e a violência de gênero.” Embora esse tipo de crime não seja um fenômeno recente, o registro dos casos aumentou significativamente nos últimos anos, impulsionado pela atuação dos movimentos de mulheres, pela implantação de políticas públicas e pela produção de dados, avalia a socióloga Rochelle Fellini Facheneto, coordenadora do Grupo de Pesquisa Violência e Cidadania da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Esses fatores, prossegue, foram fundamentais para consolidar o feminicídio como uma questão social e política.
Apesar dos avanços, entre eles a criação da primeira Delegacia de Atendimento à Mulher, em São Paulo, em 1985, e a promulgação da Lei Maria da Penha em 2006, a violência seguiu naturalizada por décadas. Somente em 2015, com a inclusão do crime como qualificador do homicídio, e, mais recentemente, em 2024, com o reconhecimento do feminicídio como crime autônomo, o País fortaleceu o marco legal de combate à violência de gênero. Essas iniciativas, somadas à maior divulgação dos casos, ampliaram a compreensão do fenômeno.
A Lei Maria da Penha, afirma Fachenetto, tornou-se uma relevante política pública ao propor ações que vão da prevenção de agressões à proteção das vítimas e responsabilização dos agressores. Apesar dos avanços, há lacunas significativas na implementação da lei que precisam ser superadas com apoio do Estado, para garantir respostas mais efetivas ao problema. Entre os principais desafios está a concentração dos serviços em capitais e grandes centros urbanos, o que dificulta o acesso de mulheres que vivem em municípios do interior. •
Publicado na edição n° 1360 de CartaCapital, em 07 de maio de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Feminicídio nos pampas’
Por:Carta Capital