Conhecer o escritório do advogado Técio Lins e Silva, no centro do Rio de Janeiro, é mergulhar na história do Direito no Brasil. Livros, fotos e outros documentos, entre eles um pôster original datado de 1906 com os formandos da turma do avô de Técio, Raul Lins e Silva, na Faculdade de Direito de Recife, remetem a momentos marcantes de uma advocacia exercida em prol dos direitos humanos e consolidada por seu pai, também chamado Raul, e pelos tios Evandro e Aroldo. Fiel à tradição familiar, o “jovem Técio”, como era chamado, começou a atuar, sem jamais cobrar honorários, na defesa de presos políticos durante a ditadura. Por mais de duas décadas, foi o advogado de figuras como Ziraldo, Millôr Fernandes, Camila Amado, Luiz Tenório e Lúcia Murat, entre outros.
Ao lado de Evandro Lins e Silva, que chegou a ser nomeado ministro do Supremo Tribunal Federal e logo depois cassado, Técio acompanhou dos bastidores todo o drama que precedeu o golpe contra o então presidente João Goulart. A veia política o fez tentar uma cadeira no Senado pelo PSDB em 1990, quando obteve expressivos 1,2 milhão de votos, perdendo a eleição para Darcy Ribeiro, do PDT. Hoje, aos 79 anos e próximo de inaugurar um instituto com seu nome, ele acaba de encarar um novo desafio ao assumir em janeiro a Procuradoria-Geral de Niterói, convite classificado como irrecusável: “Sou uma testemunha incômoda da História. E sou um dos últimos”.
CartaCapital: Como o senhor avalia a proposta de anistia aos golpistas de 2023?
Técio Lins e Silva: Anistia pressupõe condenação, culpa e perdão pelo crime cometido. Falam nessa possibilidade antes mesmo do julgamento. Essa anistia não tem o menor sentido técnico, político ou jurídico. É uma solução para alimentar os seguidores do Bolsonaro. Eles acamparam na porta de quartéis estimulados pelo ex-presidente, que agora diz não ter nada a ver com isso, porque estava nos EUA. Havia um apoio ostensivo de parte das Forças Armadas. Tente acampar na frente do Forte Copacabana hoje e veja o que acontece após meia hora com a barraca estendida.
“Essa anistia não tem o menor sentido técnico, político ou jurídico”, avalia
CC: As penas impostas pelo STF são exageradas?
TLS: O advogado militante é proibido de tecer considerações sobre um processo em andamento. Isso está no nosso Código de Ética. Posso dizer que é importante que se garanta o devido processo legal, que se garanta aos advogados a liberdade de defender. Não vejo nenhum desses acusados impedidos de exercer o direito de defesa. Se o juiz é mais ou menos rigoroso na aplicação das penas, isso é uma questão que não cabe a mim, nesse momento, fazer apreciação. Como todo advogado criminal que se preze, eu não sou punitivista, mas casos como esse merecem um tratamento de acordo com a lei. O que essa gente fez, estimulada ou não, consciente ou não, levou o País à beira do caos. Alimentaram uma narrativa de golpe de Estado. O passo seguinte, se tudo desse certo, era tomar o poder e matar o presidente da República, o vice e um ministro do STF.
CC: Há uma comoção na direita por causa da cabeleireira que pichou a estátua da Justiça com batom e pode ser condenada a 14 anos de prisão.
TLS: Criaram essa mística da coitadinha. Na verdade, ela participou de um processo violentíssimo de destruição e desmoralização dos poderes do Estado, da invasão da Corte Suprema, de quebrar tudo, destruir um relógio centenário, uma violência desmedida. Não sei dizer se a pena dela é alta ou não, mas sei que são fatos puníveis e que devem ser punidos. Depois, mais para frente, tem livramento condicional, indulto, redução de pena. Hoje, nós temos que dar a essa gente o tratamento que merece. O País precisa de Justiça.
CC: O Brasil paga por sua tradição de impunidade?
TLS: A nossa anistia, que se dizia ampla, geral e irrestrita, foi uma grande farsa que serviu para perdoar torturadores, homicidas e farsantes, gente da pior espécie, que conviveu nos porões da ditadura. Eu tive vários clientes que não foram anistiados, eles saíram porque, com a revogação da Lei de Segurança, foi aplicado o correspondente ao Código Penal, que eram penas muito menores. A anistia só serviu para deixar impunes essas figuras horrorosas que todo mundo conhece e que Bolsonaro apoiava.
Ditadura. “Éramos advogados de ‘subversivos’. Hoje somos heróis. Naquela época, não” – Imagem: Acervo Arquivo Nacional
CC: As instituições resistiram à tentativa de golpe. A democracia brasileira está mais madura?
TLS: Ainda não amadurecemos como seria de se esperar de um país grande e desenvolvido. Ainda temos um Congresso que é eleito em grande parte por um processo que não é democrático por causa do dinheiro, da compra de votos. Eu entrei na Faculdade Nacional de Direito em 1964, entrei com o golpe e saí com o AI-5. Fui punido várias vezes porque fui vice-presidente do Centro Acadêmico Cândido de Oliveira. Os diretores foram todos processados pela Lei de Segurança, denunciados.
CC: Como era defender presos políticos durante a ditadura?
TLS: Era difícil, mas conseguimos êxito com os instrumentos da legalidade, os processos, com o Tribunal Militar, as auditorias. Essa luta pela legalidade e pela diminuição do sofrimento dos presos se deveu ao esforço de pouquíssimos advogados no Brasil inteiro que se dedicaram a essa atividade. Éramos advogados criminais de quem? De subversivos, de comunistas, de inimigos do governo. Nenhum cliente rico nunca ia conversar conosco, ninguém trazia um processo comum para o escritório porque nós não éramos bem vistos pelo Estado. Hoje somos heróis e festejados. Naquela época, não.
“A liberação do chá de Santo Daime tem 40 anos e nunca se ouviu falar em abuso do uso desse chá, de tráfico de chá, de boca de chá”
CC: O senhor teve atuação marcante em causas que ajudaram a definir a política de drogas no Brasil. Como foi essa experiência?
TLS: Esse é um debate eterno. Fui presidente do Conselho Federal de Entorpecentes. A lei vigente à época dizia que qualquer pessoa, para falar sobre drogas em público, tinha que submeter o texto da sua fala ao órgão, uma lei que nós, de uma maneira, digamos, indisciplinada, não cumpríamos. Quando um padre ou professor mandava um texto de homilia ou de aula falando sobre drogas, eu aprovava. E estou falando da Nova República, já em 1985. Nós retiramos a proibição das substâncias do chá de Santo Daime, também conhecido como ayahuasca, que é usado por instituições que funcionam como igrejas. Ficamos um ano estudando essa questão e tivemos a coragem de liberar essas substâncias, que são alucinógenas, mas que os fiéis tomam em rituais religiosos: dançam, cantam e meditam. Lá se vão 40 anos e até hoje nunca se ouviu falar em abuso do uso desse chá, de tráfico de chá, de boca de chá.
CC: Segundo pesquisas, a segurança é a principal preocupação nacional.
TLS: É triste ver que as coisas se repetem na questão da segurança. Parte da sociedade quer mais repressão e aumento de penas, como se isso fosse uma solução. Nenhum criminoso consulta o Código Penal para ver se vai ou não praticar o crime.
Descriminalização. A substância alucinógena é utilizada até hoje em rituais religiosos – Imagem: Ministério dos Povos Indígenas
CC: Outra atuação marcante aconteceu após a fusão dos estados do Rio de Janeiro e da Guanabara, que este ano completa meio século…
TLS: Esse assunto me faz pensar na finitude da vida e em como o tempo passa rápido, porque eu integrei o primeiro Conselho Seccional da OAB composto por membros da extinta Guanabara e do extinto Estado do Rio, estes oriundos de Niterói, a antiga capital. A fusão foi draconiana, uma imposição ditatorial, sem nenhuma consulta ou aprovação. Resolveram fazer e fizeram. Era preciso transformar dois Conselhos em um só, me lembro do preconceito que existia contra os de cá e os de lá. Fizeram a presidência com um advogado do antigo Estado da Guanabara, Gelson Fonseca, e a vice-presidência com um advogado do antigo Estado do Rio, Waldemar Zveiter. Desgraçadamente, o Gelson, que era um grande advogado de família, com poucos meses de mandato sofreu um infarto e morreu. Assumiu o vice-presidente, que era de Niterói, e aí se deflagrou uma rebelião interna na Ordem porque não queriam admitir que alguém de lá assumisse a presidência.
CC: Quis o destino que, 50 anos depois, o senhor comandasse a Procuradoria-Geral da cidade de Niterói…
TLS: Foi um convite irrecusável, que fez a essa altura da vida eu me licenciar da advocacia para ser o defensor da cidade de Niterói, à frente de uma equipe impecável com 40 procuradores, todos concursados e profissionais competentes. Além disso, o prefeito Rodrigo Neves é um exemplo de dignidade. Fui seu advogado quando ele foi perseguido pelas forças da reação brutal e ignorante representada pelo bolsonarismo. •
Publicado na edição n° 1357 de CartaCapital, em 16 de abril de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Carroça na frente dos bois’
Por:Carta Capital