A influência das regras europeias sobre a regulação da internet ao redor do mundo segue forte, mas já não é mais incontestável. Um exemplo relevante é o caso brasileiro, que tem seguido os passos da União Europeia com sua Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) e agora com a proposta de uma Lei de Mercados Digitais. No entanto, a forma como o Brasil aplica essas inspirações revela caminhos distintos.
Essa análise é feita por Miguel Otero-Iglesias e Gonzalo Rodríguez Gordo, pesquisadores da IE University, em artigo publicado no The Conversation. Segundo eles, embora haja uma proximidade regulatória entre os dois blocos, o contexto político, econômico e institucional do Brasil impõe diferenças significativas — o que pode impactar diretamente o futuro da regulação digital global.
Da LGPD ao “DMA brasileiro”
- Os pesquisadores apontam que a União Europeia sempre se destacou como uma “potência normativa”, capaz de influenciar legislações em outras partes do mundo sem recorrer ao poder militar.
- “Durante anos, esse ‘Efeito Bruxelas’ tem funcionado no âmbito digital”, escreveram.
- A LGPD brasileira é um reflexo direto do Regulamento Geral de Proteção de Dados (GDPR) da UE.
- Agora, o Projeto de Lei 2768/2022, conhecido como “DMA brasileiro”, espelha a Digital Markets Act europeia ao buscar limitar práticas anticompetitivas de grandes plataformas digitais.
- A própria relatora da proposta, deputada Any Ortiz, já afirmou que o Congresso acompanha de perto como o DMA está sendo aplicado na Europa para embasar a discussão local.

Alinhamento inspirado, mas com adaptações
Apesar da inspiração clara, os autores alertam que o Brasil segue um caminho diferente na prática. O texto brasileiro se aplica a um número muito maior de empresas, incluindo startups, devido a um limite de receita mais baixo e à ausência de uma definição clara de “poder de controle de acesso significativo”.
Além disso, diferentemente da Europa — onde as autoridades de concorrência lideram a fiscalização —, no Brasil, a supervisão caberá à Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel). Para os pesquisadores, isso “expande o escopo regulatório e levanta preocupações sobre o excesso de regulamentação que poderia prejudicar a inovação”.
Tensão entre regulação e inovação
O cenário global adiciona outra camada de complexidade. EUA e UE têm se enfrentado em torno da regulação digital. Em um episódio emblemático, o presidente americano Donald Trump classificou as regras europeias como uma forma de “exploração injusta da inovação americana”.

Em resposta, a Comissão Europeia publicou uma carta reafirmando que as regras são aplicadas de forma equitativa. “Elas não são direcionadas exclusivamente às empresas americanas”, explicam os pesquisadores, citando investigações contra empresas europeias e chinesas, como Booking.com e TikTok.
Preocupações do Brasil no cenário internacional
Para Otero-Iglesias e Rodríguez Gordo, essas disputas levantam dúvidas no Brasil sobre o futuro da parceria regulatória com a Europa. “O Brasil teme ficar isolado em seus esforços para regulamentar as grandes tecnologias se a UE enfraquecer sua posição”, analisam.
Essa preocupação é especialmente relevante em um momento em que o Brasil busca reforçar sua presença em fóruns internacionais e exercer maior influência nas negociações sobre governança digital.
Multas da UE testam credibilidade regulatória
Mesmo sob pressão, a UE tem demonstrado disposição para aplicar a nova legislação. Recentemente, foram impostas multas de 700 milhões de euros à Apple e à Meta por violações antitruste — valores que, embora menores do que o permitido pelo DMA, sinalizam a seriedade da Comissão.
Se a não conformidade persistir, a Comissão Europeia pode aplicar sanções diárias de até 5% do faturamento global médio das empresas. “Essa abordagem dá à Comissão a flexibilidade para aumentar a fiscalização se essas empresas continuarem a violar as regras”, explicam os autores.
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Reações das gigantes da tecnologia
As Big Techs não ficaram em silêncio. Um porta-voz da Casa Branca chamou as sanções de “extorsão”, enquanto a Meta acusou a Comissão de discriminar empresas americanas. A presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, respondeu afirmando que a aplicação da lei seria feita “independentemente da origem da empresa e de quem a dirige”.

Segundo os pesquisadores da IE University, essa firmeza é necessária, mas ainda insuficiente. “Não se sabe ao certo quanta pressão a UE ou o Brasil podem suportar sozinhos”, observam.
Cooperação como saída possível
Diante da tensão entre regulação e inovação, os autores apontam que uma maior cooperação entre Brasil e Europa poderia ajudar a garantir soberania digital e concorrência justa no ambiente online. “Uma aliança mais forte entre os dois poderia servir de modelo para a cooperação internacional”, concluem.
Fonte: Olhar Digital