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sexta-feira, 16 maio, 2025
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Batalha perdida? – CartaCapital

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Pela segunda vez, o Brasil não conseguirá cumprir a meta de erradicar o trabalho infantil, compromisso assumido na Agenda 2030 da ONU. O prazo para eliminar as piores formas de exploração expirou em 2016, e o limite para erradicar totalmente o problema se encerra em 2025 – algo impossível de ser alcançado, segundo diversos especialistas consultados por CartaCapital. Apesar da expressiva redução registrada nas últimas décadas, o País ainda contabilizava mais de 1,6 milhão de crianças e adolescentes no mercado de trabalho em 2023, de acordo com o dado mais recente da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua, do IBGE.

A legislação brasileira proíbe o trabalho para menores de 16 anos, salvo na condição de aprendiz, a partir dos 14. Ainda assim, é comum encontrar crianças e adolescentes nos semáforos das grandes cidades, vendendo balas ou panos de prato. No campo, também não é raro vê-los nas lavouras, cuidando de animais ou até manuseando agrotóxicos. Mesmo que a realidade salte aos olhos, esses brasileiros seguem “invisíveis”, alerta a juíza do Trabalho Mariana ­Milet, coordenadora regional do Programa de Combate ao Trabalho Infantil e Estímulo à Aprendizagem de Pernambuco.

O trabalho infantil é atravessado por fatores como pobreza, raça e gênero, explica Milet. As crianças e os adolescentes explorados são, em geral, oriundos de famílias em extrema vulnerabilidade social, cujos pais e avós também vivenciaram essa realidade. “É um ciclo que tende a não ser rompido se não for oferecida a oportunidade de se dedicarem exclusivamente aos estudos e a atividades lúdicas”, afirma. Entre as ações desenvolvidas para combater a prática estão palestras e rodas de conversa com as próprias vítimas e seus professores. “Se a criança só conhece essa realidade, dificilmente vai identificar que está em condição de trabalho forçado. Por isso, a aproximação com as escolas é tão importante”, conclui.

O País assumiu o compromisso na Agenda 2030 das Nações Unidas

O Programa de Combate ao Trabalho Infantil e Estímulo à Aprendizagem, criado pela Justiça do Trabalho, é desenvolvido por juízes e desembargadores em todo o território nacional e tem na educação um de seus pilares fundamentais para erradicar o problema. “A aprendizagem é uma política pública efetiva de combate ao trabalho infantil, porque representa uma forma de proteção. Se não há como evitar o trabalho da criança, então que ele ocorra com dignidade”, afirma Mariana Milet.

Felipe Caetano, hoje com 23 anos, começou a trabalhar como garçom aos 8, em um restaurante à beira-mar em Aquiraz, no litoral do Ceará. Para ajudar a mãe a sustentar a família, atendia turistas como gente grande. “Os patrões tratam as crianças como adultos, a cobrança por responsabilidade é igual. Mas, na hora de pagar, o valor é muito menor”, denuncia. Aos 12 anos, assistiu a uma palestra na escola e identificou sua condição de vítima. A partir daquele momento, precisou convencer a mãe de que seria melhor dedicar-se apenas aos estudos. “Foi muito difícil, porque minha mãe trabalhou desde criança, meus avós e bisavós também. Eu e minhas irmãs não tínhamos outra perspectiva.”

Com a ajuda de um procurador do Trabalho, Caetano desenvolveu um fórum de debate sobre a realidade do trabalho infantil, formado pelos próprios adolescentes – em um momento em que apenas os adultos falavam sobre o tema. Tornou-se defensor dos Direitos da Criança e ingressou em uma escola de tempo integral. O resultado do esforço não poderia ter sido mais satisfatório. “Passei de primeira no vestibular para o curso de Direito na Universidade Federal do Ceará”, conta, com orgulho. Hoje, é servidor do Tribunal de Justiça do Ceará e dedica-se a proporcionar a outras crianças a mesma chance que teve de romper o ciclo de exploração. “Eu trabalhava debaixo de sol, com os pés descalços na areia quente. Isso deixou marcas profundas, psicológicas e físicas. Até hoje tenho manchas no rosto.”

Invisíveis. A sociedade naturalizou essa cena, lamenta a juíza Mariana Milet – Imagem: Redes Sociais/ILO

Autor do livro O Trabalho Infantil na Jurisprudência dos Tribunais Superiores (Ed. Lacier), o jovem especialista analisa na obra o tratamento dado pela Justiça ao tema – e hoje é uma das referências no assunto no Brasil. “Minha irmã de 18 anos também está cursando Direito, e a mais nova quer estudar Medicina. Há poucos anos, isso era impensável na nossa família. Ninguém tinha sequer terminado o Ensino Fundamental. O trabalho precoce nos tira o direito de sonhar e de ter perspectivas”, avalia Caetano.

O procurador do Trabalho André Canuto, da Coordenadoria Nacional de Combate ao Trabalho Infantil do Ministério Público do Trabalho, conhecida pela sigla Coordinfância, destaca a perda de perspectiva como um dos impactos mais graves do trabalho infantil. “A criança vítima do trabalho precoce tem a infância roubada. Essa é uma etapa essencial para o desenvolvimento de qualquer pessoa, e, ao ter essa fase comprometida, haverá marcas irreversíveis para toda a vida”, lamenta.

De acordo com Canuto, vice-coordenador da Coordinfância, a exploração prejudica o desenvolvimento biopsicossocial, o desempenho escolar e a capacidade de ter uma formação adequada no futuro, perpetuando o ciclo da pobreza. “Há quem tente justificar o trabalho infantil, alegando que é melhor a criança trabalhar do que roubar. Isso é uma visão simplista. A criança não deve estar nem trabalhando nem roubando. Esse discurso serve apenas para justificar a violação dos direitos.” Se o trabalho não é reconhecido como violência, há uma grande dificuldade na sociedade em denunciá-lo. Em 2024, o MPT recebeu 6 mil denúncias. “É muito pouco, se pensarmos no universo de mais de 1 milhão de crianças que trabalham.”

Em 2023, ao menos 586 mil crianças e adolescentes exerciam as piores formas de trabalho infantil

De acordo com a Pnad Contínua de 2023, quase metade das crianças e adolescentes em situação de trabalho, 48,3%, atua no comércio. Em segundo lugar, aparece o setor de reparação de ­veículos, com 26,7%, seguido pelas atividades agrícolas, com 21,6%. Embora as ocupações urbanas sejam predominantes, é no campo que geralmente se concentram as piores formas de trabalho infantil – aquelas que oferecem riscos à saúde ou expõem a acidentes graves, capazes de causar sequelas para toda a vida.

As chamadas “piores formas” de trabalho infantil foram definidas pela Organização Internacional do Trabalho e incluem mais de 90 atividades laborais, além da exploração sexual, do aliciamento para o narcotráfico e do tráfico de pessoas. No Brasil, cerca de 586 mil crianças e adolescentes se enquadram nessa categoria. A maior parte dessas vítimas é composta de meninos negros, quase dois terços do total. A composição varia, porém, de acordo com a atividade. No trabalho doméstico, por exemplo, as vítimas são majoritariamente meninas negras.

A juíza do Trabalho Viviane Martins, gestora regional do Programa de Combate ao Trabalho Infantil e Estímulo à Aprendizagem na Bahia, destaca a naturalização do trabalho infantil como um fator preocupante. No caso do trabalho doméstico, a maior parte dos empregadores pertence às classes média e alta. “Não é possível que essas casas não recebam visitas, que essas crianças não interajam com pessoas de fora da família e que ninguém ache estranho aquela menina trabalhando”, indigna-se.

Para a magistrada, resolver o problema exige a atuação conjunta de diversos atores e instituições. Ações integradas entre o sistema de Justiça, a sociedade civil e o Poder Público – por meio de políticas de educação, saúde e transferência de renda – são indispensáveis para enfrentar a complexidade da questão. “A Justiça não tem como fazer nada sozinha.” Viviane Martins também ressalta a importância de qualificar toda a rede de profissionais que integram o sistema de garantia dos direitos da criança. “É necessário oferecer treinamento adequado, desde os atendentes que estão na linha de frente e precisam identificar e encaminhar corretamente os casos, até os magistrados, que devem compreender a violação e saber julgar esses processos.”

A juíza Patrícia Pereira de Sant’Anna, diretora de Cidadania e Direitos Humanos da Associação Nacional de Magistrados da Justiça do Trabalho ­(Anamatra), concorda com a avaliação da colega. Para ela, o País ainda carece de recursos humanos para enfrentar o problema de forma robusta. “O Ministério do Trabalho e Emprego e a Fiscalização do Trabalho sofreram, nos últimos anos, um desmonte imenso. Eles não conseguem atender a todas as demandas por falta de pessoal”, denuncia.

Segundo a magistrada, é fundamental diferenciar o que é uma ajuda nas tarefas domésticas do que configura trabalho infantil propriamente dito. “A criança pode lavar uma louça, varrer o chão e realizar algumas atividades domésticas em sua casa. Isso é uma ajuda, não há nada de anormal. Ao contrário, pode até ser benéfico”, afirma. Já o trabalho infantil envolve comprometimento com horários, responsabilidades, remuneração e cumprimento de metas. “É preciso ter maturidade para lidar com isso.” •

Publicado na edição n° 1362 de CartaCapital, em 21 de maio de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Batalha perdida?’





Por:Carta Capital

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