A expressão “pulmão do mundo”, em geral, é erroneamente utilizada para designar as florestas tropicais e equatoriais. Embora estas sejam de fato produtoras de quase metade do oxigênio lançado na atmosfera da Terra, estudos científicos apontam que são os mares e os oceanos, graças ao trabalho feito pelos fitoplânctons, os principais responsáveis pelo acúmulo histórico do gás indispensável à vida no planeta. Igualmente importantes por absorver boa parte dos raios solares e equilibrar o clima global graças à retenção de carbono e à dinâmica das correntes marinhas, os oceanos andam, no entanto, relegados a um segundo plano tanto na preocupação dos ambientalistas quanto na definição de políticas públicas.
Na tentativa de suprir a lacuna, a terceira Conferência da ONU sobre Oceanos, em Nice, na França, reuniu dezenas de chefes de Estado, entre eles o presidente Lula. Em uma discussão umbilicalmente ligada à questão geral do clima a ser discutida na COP30, em novembro, em Belém, os governos reconhecem a necessidade de adoção urgente de políticas globais de proteção à “área azul” do planeta, que corresponde a 71% da superfície terrestre. A pauta na Riviera Francesa incluiu temas como a redução da poluição e da acidificação das águas provocadas por plásticos e combustíveis fósseis, o fim da pesca predatória e da perda de biodiversidade marinha e a consolidação de meios de vida e produção economicamente sustentáveis para as comunidades costeiras. Os pontos devem constar da Declaração de Nice, documento consensual a ser anunciado ao fim do evento.
O modelo de avanço consensual praticado nas conferências da ONU limita a adoção de políticas mais efetivas, mas o clima entre os representantes governamentais presentes à chamada Cúpula dos Oceanos é de otimismo. Anfitrião do encontro, que tem participação meramente protocolar dos Estados Unidos sob Donald Trump, o presidente da França, Emmanuel Macron, fez um apelo pela “revitalização do multilateralismo”, por uma “moratória da mineração em águas profundas” e por avanços na adoção do Tratado do Alto-Mar. O acordo trata da proteção das “águas internacionais”, que ficam além das 200 milhas náuticas que geralmente compreendem as “águas territoriais” de cada país, e representam mais de dois terços dos mares e oceanos. Para entrar em vigor, o tratado, criado há dois anos, precisa ser ratificado por ao menos 60 países, mas a recusa dos EUA em assinar é um grande entrave a projetos e financiamentos.
Na conferência da ONU em Nice, o presidente Lula comprometeu-se a assinar o Tratado de Alto-Mar
Em Nice, Lula anunciou sete compromissos voluntários, com destaque para a expansão de 26,7% para 30% das Áreas Marinhas Protegidas, o que faz o País cumprir as Metas Globais de Biodiversidade firmadas pela ONU em 2022. Os demais compromissos tratam de temas como descarbonização da frota naval, pesca sustentável, ciência e tecnologia, educação e despoluição. “Implementaremos programas para a preservação de manguezais e recifes de corais e estamos formulando uma estratégia nacional contra a poluição de plásticos”, discursou o presidente. Um “esforço inédito de planejamento espacial marinho”, acrescentou Lula, permitirá ao Brasil um aproveitamento equilibrado do oceano “que leve em conta os impactos ambientais e os serviços ecossistêmicos prestados”. O presidente afirmou ainda que o Brasil assinará o Tratado do Alto-Mar para “assegurar a gestão transparente e compartilhada da biodiversidade”.
Diretora do Departamento de Oceano e Gestão Costeira do Ministério do Meio Ambiente, Ana Paula Prates avalia que o País apresentou na cúpula avanços relevantes que reforçam sua intenção de exercer papel de liderança global na agenda climática. “O Brasil é uma potência oceânica, com mais de 40% de seu território no mar, e vem consolidando esse papel ao dar continuidade a impulsos recentes como a bem-sucedida presidência brasileira do G20, que conferiu centralidade ao oceano na agenda ambiental global e reforçou a importância de soluções climáticas baseadas no oceano. Esse caminho segue agora rumo a Belém.”
Presente no evento na França, Prates afirma que, para tornar efetivo o aumento da área protegida, será necessária a criação de novas unidades de conservação, destacando que “a eficácia de sua gestão seja uma prioridade, conduzida com ampla consulta às comunidades locais, assegurando direitos e promovendo uma governança legítima e inclusiva”. A diretora elenca como avanços a aprovação da Política Nacional para a Conservação e Uso Sustentável dos Recifes de Coral (ProCoral), a concretização do programa ProManguezal e a implementação do Planejamento Espacial Marinho. A aprovação da Lei do Mar recentemente pela Câmara, acrescenta, representa um mecanismo essencial de fortalecimento e integração dos diversos instrumentos de gestão que incidem sobre os 8 mil quilômetros da costa brasileira. “É ainda mais urgente, diante das crescentes ameaças ao sistema costeiro-marinho, como a ocupação desordenada, a poluição, a acidificação e o aumento da temperatura oceânica. É fundamental que seja também aprovada no Senado e implementada de forma integral.”
Desastre. A intensa degradação da diversidade marinha acelera o processo de aquecimento global – Imagem: iStockphoto
Analista de Conservação da WWF Brasil, Marina Corrêa, avalia que o governo brasileiro acertou ao incluir ações baseadas no oceano em sua Contribuição Nacionalmente Determinada (NDC) e ao apresentar novos instrumentos de política pública voltados à proteção de ecossistemas vulneráveis às mudanças climáticas, em diálogo com outras nações que desenvolvem iniciativas semelhantes. “Essas ações posicionam o País de forma proativa no cenário internacional. O desafio agora é transformar ambição em implementação participativa e de longo prazo”, diz a ambientalista, que também esteve na conferência em Nice.
Corrêa aponta a contradição entre o posicionamento internacional do governo brasileiro e o avanço no País de propostas de exploração de combustíveis fósseis que ameaçam a vida marinha. “Para que possamos cumprir a meta de limitar o aquecimento global a 1,5°C, conforme estabelecido no Acordo de Paris, não podemos investir em novas fronteiras de exploração de petróleo. Combater as mudanças do clima exige a aceleração de uma transição energética justa e o fortalecimento da conservação de ecossistemas terrestres e marinhos que funcionam como importantes estoques de carbono.”
Nesse contexto, destaca, o debate sobre a exploração de petróleo e gás em regiões sensíveis, como a Margem Equatorial e o entorno de Fernando de Noronha, expõe uma questão central. “Nossa zona costeira e marinha é um território vivo, de usos diversos e disputas. Atividades com interesses e visões de futuro muitas vezes conflitantes ocorrem simultaneamente nesse espaço.” Por isso, conclui a integrante do WWF, é fundamental que o Planejamento Espacial Marinho “seja orientado por uma abordagem ecossistêmica e construído com ampla participação da sociedade civil, dos povos indígenas e das comunidades tradicionais”.
A conferência vai aprovar financiamento de 8,7 bilhões de euros para a recuperação marinha
Para Fernanda Rodrigues, militante da Associação Terrazul e do Fórum Brasileiro de ONGs e Movimentos Sociais para o Meio Ambiente (FBOMS), ainda há “um grande descompasso” entre os compromissos internacionais e a realidade da política interna brasileira. “A recente aprovação da Lei do Mar representa um avanço importante, pois fornece um arcabouço jurídico para a governança costeiro-marinha. Sua efetividade dependerá, no entanto, da articulação interinstitucional, da priorização de orçamentos e da participação social ampla e contínua. A criação de áreas protegidas é importante, mas é necessário haver instrumentos de gestão participativa, fiscalização e políticas de base ecossistêmica.” Não há conciliação entre a preservação dos ecossistemas marinhos e a expansão da fronteira fóssil, acredita. “Não há transição justa possível, se ela continuar sendo pensada sob a lógica extrativista e centralizadora do petróleo.”
Além da questão do Tratado do Alto-Mar, espera-se que a Declaração de Nice traga avanços possíveis em temas como a criação de um novo mecanismo de financiamento. Até o fim da Cúpula, deve ser anunciado aporte de 8,7 bilhões de euros, previsto para 2028, com o objetivo de suprir uma demanda anual estimada em 175 bilhões de dólares necessários para restaurar a saúde dos ecossistemas marinhos. O objetivo de cientistas e ambientalistas agora é conectar Nice a Belém. “Essa conexão é fundamental para consolidar uma visão integrada, duradoura e capaz de aumentar a ambição e implementação de soluções climáticas baseadas no oceano no Brasil e no mundo”, diz Corrêa. •
Publicado na edição n° 1366 de CartaCapital, em 18 de junho de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Água no nariz’
Por:Carta Capital