27.3 C
Manaus
terça-feira, 3 junho, 2025
InícioAmazonasA arte em Parintins mostra um Brasil que pode mudar na força...

A arte em Parintins mostra um Brasil que pode mudar na força da cultura popular

Date:

Talentoso desde a raiz de sua origem amazônida, o parintinense parece trazer no DNA uma assinatura única de criatividade e resistência

PARINTINS – A arte tem o poder de transformar vidas. Ela pode mudar rotas e promover revoluções completas. O Festival de Parintins, além de ser um produto cultural e turístico do Amazonas, é também um agente de transformação social na vida de mulheres; pessoas pardas; pretas; descendentes de indígenas; pessoas LGBTQIAP+ e tantas outras que historicamente foram invisibilizadas. Nos galpões dos Bois Caprichoso e Garantido, em Parintins, muitas encontram a oportunidade de se descobrir profissionalmente e, com isso, gerar renda e ganhar destaque em seus campos artísticos. Afinal, o canto, a dança, o artesanato e as artes plásticas estão presentes no dia a dia da cidade.

Um exemplo é Ericky Nakanome, descendente de japoneses, que, ainda curumim, enfrentou as intempéries naturais de uma criança pobre nascida no interior do Amazonas. Filho de mãe solo, brincava nas ruas e quintais do bairro Santa Clara e, aos 10 anos, jamais imaginaria se tornar uma das referências no Festival de Parintins. Tudo mudou e se moldou com o tempo, graças ao talento nato e, claro, às oportunidades oferecidas por espaços como a Escola de Artes Irmão Miguel de Pascale, que ele abraçou de forma única.

“Iniciei na Escola de Artes Irmão Miguel de Pascale na oficina de desenho e depois participei de outras oficinas. Conheci outras linguagens artísticas, como pintura, escultura, dança, teatro e instrumentos musicais. A força desse projeto social trouxe para minha vida uma transformação gigante”, pontuou.

Na sua trajetória artística, Ericky Nakanome atuou como artista de indumentária, desenhando e costurando vestidos para a Sinhazinha da Fazenda; também interpretou o personagem Gazumbá no Auto do Boi; e hoje ocupa o mais alto posto artístico do “Boi da Estrela” como presidente do Conselho de Artes. Mestre em Artes Visuais pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), ele também é professor de Artes Visuais na Universidade Federal do Amazonas (Ufam).

A trajetória do sonho à realidade, recorda o artista, foi longa e dolorosa, e em vários momentos ele pensou em desistir. Para ele, quem nasce no interior do Brasil, mais precisamente no Amazonas, está distante de inúmeras oportunidades e espaços que dão visibilidade aos artistas.

“Ao mesmo tempo em que me deparava com essa situação, também me encantava com tudo aquilo que era construído dentro do meu lugar, da minha aldeia, da minha cidade — uma produção artística local que não era apenas local, era o meu universo, o meu parque de diversões”, recordou, completando que essa era sua referência de infância e realidade.

“Até essa transformação social, o caminho desse sonho foi o Boi Caprichoso, pelo desejo que eu sentia na infância e pelas realizações que fui construindo no meu espaço. Como aluno de desenho, pintura e escultura, conhecendo pessoas, convivendo com a história do Caprichoso, construindo as minhas referências. E quem sou nessa transformação me deu certeza de quem sou como identidade, sexualidade e personalidade, numa construção de caráter e de todas as referências que tenho, não só de arte, mas também de memória”, explicou.

Ericky é um dos exemplos de como a arte muda trajetórias numa cidade que respira e transpira arte em suas mais diversas formas.

Presença feminina

Outro exemplo importante, que revela a força feminina em um meio majoritariamente masculino, é Rafaela Souza, a Potira, parintinense de 40 anos. A arte a levou a entrar em espaços inéditos: foi a primeira mulher a assinar contrato como figurinista no Festival Folclórico de Parintins. O ano não é tão distante: foi em 2022, quando criou o vestido da Sinhazinha Valentina Coimbra, no Boi-Bumbá Garantido.

“Foi a minha estreia e a dela na arena”, recorda Rafaela, completando que sempre houve mulheres artistas nos dois bois, como Graça Faria e Carmen Cid, que são suas inspirações, mas que nunca assinaram contratos como figurinistas.

“Infelizmente, essas artistas nunca assinaram contratos como figurinistas. São definidas como costureiras, mas são grandes artistas. Quero muito que mais mulheres artistas apareçam e sejam valorizadas”, destacou.

Rafaela lembra que a arte sempre esteve presente na sua vida, mas começou com a dança. Foi dançarina do Grupo de Dança Garantido Show de 1997 a 2000. Em 2009, começou a confeccionar acessórios — tiaras e casquetes de penas — quase por acaso.
“Montei um acessório só observando outras pessoas fazendo. Quando cheguei ao ensaio, recebi elogios e todos perguntaram quem tinha feito. A partir daí, comecei a receber encomendas”, conta, confirmando que a arte em Parintins é algo natural.

Além da ilha

Rafaela também é exemplo de artista que Parintins exporta para o Carnaval em vários estados do Brasil, principalmente Rio de Janeiro e São Paulo.
Em 2016, foi convidada para fazer a ala das passistas da Escola de Samba Beija-Flor, tornando-se a primeira mulher artista de Parintins a estar na linha de frente de uma escola de samba carioca. Ela também recebeu o prêmio de Melhor Comissão de Frente no Carnaval de São Paulo, pela Escola Gaviões da Fiel, e foi vencedora do prêmio de Melhor Figurino de Luxo pela Unidos da Tijuca, no Rio de Janeiro.
A experiência em escolas de samba deu origem ao “Potyra Ateliê”, que expandiu seus acessórios para todo o Brasil e chegou à Europa.

“Minha arte já foi exposta na Europa, em Gmünd, na Áustria. Após morar em São Paulo, estou de volta ao Amazonas há quatro anos, onde mantenho meu ateliê em Manaus. Hoje, minha arte expandiu para art décor e cenografias. Amo o que faço e é de onde vem a minha renda”, comemora.

Rafaela conta que cursou três períodos de Psicologia, mas se encontrou mesmo na arte. “A arte mudou completamente minha vida e para melhor. Ser uma mulher nesse meio, onde predominam artistas homens, é motivo de orgulho, pois trago a representatividade feminina”, completou.

O dom artístico do parintinense

Talentoso desde a raiz amazônida, o parintinense parece trazer no DNA uma assinatura única de criatividade e resistência. Essa característica o faz romper barreiras e superar a invisibilidade. É na arte que jovens periféricos de uma região periférica do Brasil ganham status de artistas de primeira grandeza. Não é fácil, não é simples e não é para todos, mas é nas pequenas frestas sociais que a arte proporciona que pretos, pobres, marginalizados, pessoas pardas, PcDs, LGBTQIAP+, descendentes de indígenas, indígenas, mulheres e todos aqueles que buscam uma direção profissional podem encontrar uma chance em Parintins. A ilha de Garantido e Caprichoso é um palco da vida aberto a grandes estreias. Quem vai brilhar? Depende se a plateia vai rir ou chorar, aplaudir ou vaiar. A arte tem dessas.

spot_img
spot_img